O telefone tocou novamente. Número desconhecido.
Leonardo achou melhor atender. Um malandrinho não seria tão insistente só para passar um trote. A voz do outro lado da linha era irritante e familiar:
—Leonardo, preciso de sua ajuda.
—Meu caro Berilo, quanto tempo, heim? Qual é o galho? Quer me contratar para ser o editor de seu novo livro de contos de terror?
—Cara, isso é sério! Precisamos nos encontrar.
O compromisso foi marcado na lanchonete local, ao anoitecer. Uma típica noite de verão, vinte e oito graus que arrancavam o leque da bolsa das senhoras de idade e garrafas de bebida geladas dos jovens. Num local bem informal, Leonardo não se importou em ir de camisa sem mangas e bermuda. Também deixou os dedos respirarem com uma Havaianas com as cores do Brasil. Já o ex-contador de histórias apareceu de camisa social, calças compridas e sapatos fechados. O amigo pediu uma cerveja em sinal de cortesia, mas ele nada tomou. Trazia um semblante carregado de tensão e uma pasta escolar cheia de recortes de jornal.
Leonardo passou os últimos meses pensando no pesadelo ocorrido no acampamento Girassol no início do ano. Ele era atento às notícias das mídias e sabia das mortes estranhas de ex-amigos e amigas que participaram desse fim de semana maldito. Antes do afastamento, resolveram em comum acordo não contar a mais ninguém o que aconteceu naquela noite. Os administradores do parque talvez tenham descoberto algo fora do comum no meio daquela mata, mas nenhuma notícia surgiu nos jornais que se referia a qualquer irregularidade no acampamento.Porém, Berilo foi mais além. Reuniu documentos de todas aquelas mortes, entre matérias impressas e vídeos baixados no celular. Leo ouvia todos aqueles detalhes enquanto degustava sua Skol e soltava uns arrotos esporádicos. O assunto ganhava uma atenção maior com as hipóteses sem fundamento do amigo:
—Veja o caso do Anderson — ele apontava a foto do cemitério com a excitação de um investigador que acabava de desvendar o autor de um crime — O carro dele foi encontrado na entrada deste cemitério. Tenho quase certeza que o corpo dele está em alguma cova lá dentro.
—Não havia nenhum túmulo violado, Berilo. Os policiais varreram aquela área de ponta a ponta. — rebateu o outro, destilando ceticismo.
—Deviam investigar mais. Claro que não podem abrir todas as covas, mas podiam arriscar pelo menos os locais onde sepultaram os conhecidos dele, ou membros da família.
—Se fosse um cara importante talvez tivessem chegado tão longe!
—Exatamente! O pouco caso com os cidadãos menos afortunados. E o caso de Rafael Duarte? Assassinado pela própria mãe? Sabia que os pais do rapaz estão fazendo tratamento psiquiátrico até hoje? Suas vidas jamais serão as mesmas.
—Você entrevistou os Duarte? — Leonardo praticamente se engasgou com a cerveja.
—Ora, claro. Os médicos defendem insanidade temporária. A paciente teve lapsos de memória durante algumas noites antes do crime, mas não tomava medicamentos para dormir, segundo o marido.
—Melissa Ramos também foi considerada uma louca?
—As circunstâncias foram favoráveis. Apareceu um quadro de um menino na casa que o marido diz não se lembrar de ter trazido. O filho do casal disse ter visto a pintura se mexendo, lhe mostrando a língua. Mas o testemunho de uma criança tem pouco valor. A Sra. Ramos possivelmente ia queimar o quadro e quem acabou se queimando foi ela mesma.
—Não acredito em objetos assombrados. Espíritos não habitam coisas inanimadas. — Leonardo duvidava inclusive da possessão. Para ele todo o comportamento anormal eram distúrbios da mente. Tratamento médico resolvem o problema. Para exorcistas não existe trabalho real, apenas uma experiência para lograr os pobres corações desesperados.
—E animais possuídos, você acredita?
Leo ficou em silêncio, tomou outro gole generoso de cerveja sem encarar o amigo.
—O caso de Novaes foi peculiar. Vários gatos a empurraram pela janela do apartamento.
—Alguém treinou todos os bichos para fazer isso! — opinou o quase embriagado de trajes informais.
—Ah, então você concorda que há um assassino habilidoso eliminando nossos amigos?
—Bem, levando-se em conta que não creio em mortos que saem de suas tumbas no cemitério ou quadros amaldiçoados, diria que sim.
—E você também concorda que todas as vítimas participaram do nosso passeio no início do ano, no acampamento Girassol?
—Claro, o caso mais recente é da jovem Dayse Silva. Morta na noite de seu aniversário, com as velas estrelares de seu bolo, há dois meses. A pergunta que não quer calar é: por quê?
—Acha que algum dos administradores do parque é um psicopata?
—É possível, se lembrarmos que nenhum deles nos ajudou a enfrentar aquela coisa de outro mundo! — Leo empalideceu e tremeu. Venderia a própria alma se tivesse a opção de jamais voltar a mencionar ou vivenciar aquela experiência com um alienígena.
—Felizmente descobri o ponto fraco daquele monstro e o destruí. O problema é que as lembranças que ele absorveu se espalharam pelo parque e foram parar em todas as nossas cabeças.
—Nossos segredos foram compartilhados, mas não é motivo para nenhum funcionário do parque querer nos matar. A não ser que o assassino seja... — Bastos arregalou os olhos para o amigo. A lata vazou por entre seus dedos e se amassou no chão com um baque metálico. Parte do líquido saltou para fora como um vulcão em erupção. O objeto de alumínio rolou para a calçada. Berilo pareceu ler perfeitamente a dedução do outro:
—Tá desconfiando de mim, Leonardo? — ele soltou uma gargalhada irônica.
—Bem, graças ao alienígena, todos nós ficamos sabendo o que você fazia ao olhar fotos íntimas de Charlene. Admita que foi bem constrangedor! — ele fez menção de se levantar, mas o outro o segurou pelo braço.
—Você acha que isso justifica os crimes? Todo cara da nossa idade já fez isso, colega! Se eu chego ao ponto de matar quem fica sabendo de uma intimidade dessas, então o psicopata sou eu!
Leonardo engoliu em seco. Por um lado sabia que se sua dedução fosse a correta, Berilo não ia mata-lo num local público, cheio de testemunhas. Todas as vítimas foram mortas dentro de casa ou em lugares isolados, como um cemitério à noite, apesar do corpo de Anderson não ter sido achado.
—Por que me chamou, Montez? — a pergunta saiu num fio de voz.
—Quero sua ajuda! Somos os únicos sobreviventes que estiveram naquele acampamento na noite da aparição do extraterrestre. Tenho quase certeza que encontraremos uma pista do assassino no Girassol. Quero achar o culpado antes que ele nos ache.
Leonardo relaxou. O que o outro dizia fazia certo sentido.
—Melhor deixar a polícia cuidar disso! — suspirou.
—Quase um ano se passou e a polícia não obteve nenhum indício, amigo. Estamos por nossa conta e risco. Vamos agendar um dia naquele acampamento e descobrir a verdade.
—Só um detalhe de minha vida que você desconhece, cara: estou namorando agora. A garota se chama Rebeca e digamos que seja um tanto possessiva. Com certeza vai exigir me acompanhar numa aventura dessas.
—Pode trazê-la se quiser, mas sabe do perigo que estaremos correndo. O risco é todo seu!
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Além da fogueira
HororBerilo Montez adora contar histórias de terror. Quando vai para um acampamento com seis amigos, vê a chance ideal de fazer o que mais gosta. Mas o que parece um ser alienígena cai na mata e começa a atacar o grupo de Berilo, transformando a diversão...