Jurandir Ramos obteve uma boa comissão com a venda de um carro novo. Trabalhar numa concessionária tinha lá suas vantagens. Bastava estar num dia bom e encontrar o cliente certo. E tinha como bem pessoal um BMW, um dos melhores modelos de sua própria concessionária. Sua esposa não queria se adaptar a essa rotina. Quando o pai falecesse ela herdaria a empresa e faria o que bem entendesse. Desde que o marido concorde.
Melissa Ramos teve toda sua vida planejada pelos pais. Foi forçada a parar de estudar para trabalhar e só voltou para a escola bem mais velha, após um casamento arranjado e um filho fora de hora. Ela pensou em abortar por conta própria e correr risco de vida com medicamentos proibidos. No fim Pedro Henrique veio ao mundo...para sofrer!
O menino cresceu sentindo na pele a dor da injustiça. Fazia coisas comuns a todas as crianças. Apanhava sem nem saber o motivo. Certa vez levara um tapa na cara, após derrubar sua mamadeira que saiu rolando pela cozinha. Ele nem sabia falar para se defender, mas no seu limitado conhecimento, deve ter pensado: “Derrubei sem querer, mãe. Veja, espirrou só umas gotas pelo bico, acho que nem vai manchar o seu piso reluzente.” O som do tapa chamara a atenção de Jurandir, mas ele não interferia nesse tipo de educação. Quando questionado numa reunião de escola a respeito dos hematomas no filho, ele respondeu que foram quedas. Esqueceu de acrescentar “quedas do humor da mãe”. Faria mais sentido.
Com cinco anos, Pedro era extremamente retraído. Temia fazer uma pergunta e apanhar por já não saber a resposta. Em casa, só dirigia a palavra por livre e espontânea vontade ao pai, nas poucas vezes que o via. Jurandir era um empresário muito ocupado. Sua missão era abastecer a casa e pagar as empregadas e a mãe educar o menino.
Melissa estudou Administração e quando tinha certa base de conhecimento para assumir a empresa dos pais, voltou a estudar o Ensino Médio de onde havia estacionado. Fez poucos amigos, o suficiente para ser convidada a passar uns dias no acampamento Girassol no início de 2014. Nesse período sua família tornou-se conhecida no colégio e Pedro foi bem recepcionado uma vez quando veio a sua escola. Dayse o carregou e o encheu de beijinhos e cócegas. O garoto adorou estar ali. O fez sentir uma criança para variar. Os rapazes só observaram, entre eles Anderson, Rafael e Leonardo; esse último fitou mais atentamente as marcas das surras nos braços de Pedro. A partir desse encontro, começou a olhar Melissa com outros olhos.
O mais importante era que a Sra Ramos não voltaria a estudar naquela escola. Um supletivo resolveria o problema. Com cinco meses em casa, começou a se sentir sem utilidade. Não tardaria a aceitar o emprego dos sonhos em um escritório, seis horas diárias, finais de semana e feriados livres; um salário acima dos três mil mensais e todos os benefícios sem desconto, como convênio médico e odontológico. Ela não dependeria mais do dinheiro do marido, que também saía das contas de seu pai.
Só faltava um incentivo para começar. O marido lhe dissera que faria uma surpresa. Ela imaginou que ia ganhar pelo menos um celular de última geração caso precisasse ligar do novo serviço para casa, mas em vez disso o Sr. Ramos chegou com um quadro, o qual havia arrematado num leilão. Chegou em casa tarde da noite, todo molhado, vítima de uma chuva de fim de verão. Aquele embrulho duro e retangular já não despertou entusiasmo na mulher. E quando tirou o papel, a decepção tomou-lhe conta. Encarou os olhos castanhos de Jurandir querendo enforcá-lo:
− O que tem na cabeça, amor? Um quadro de uma criancinha triste? O que quer me mostrar com isso? Que o Pedrinho está triste por ser nosso filho?
O marido a encarou franzindo a testa, com um sorriso peculiar. Gotas caíam da ponta de seus cabelos encharcados no tapete da sala. Ele esquecera o guarda chuva. Uma mancha escura tomava conta de suas pernas até a altura dos joelhos, como se estivesse enterrado numa poça de areia movediça. A mulher frustrada com o presente nem notara.
− Pensa que vou furar uma de minhas paredes para pendurar isso? – continuava ela, de certa forma magnetizada por aquele rostinho gorducho de um menino branquinho de olhos claros, parecia um descendente de alemão, pois os cabelinhos eram quase brancos de tão loiros. Seguindo o contorno das bochechas, lágrimas sofridas escorriam até a covinha no queixo.
− Pendure no quarto do nosso filho! Já tem um prego na parede. – sugestionou o Sr. Ramos, tremendo e caminhando até o banheiro.
Melissa aceitou a ideia. Na verdade duvidava que Pedro ia gostar de um retrato de uma criança desconhecida com mais ou menos a sua idade compartilhando seu ambiente. Já dormia profundamente quando sua “nova companhia” ocupou um espaço na parede.
Após tomar um banho quente e colocar um pijama, Jurandir deitou-se e dormiu quase instantaneamente. Nem ao menos se lembrara de secar o banheiro e a empregada só chegaria oito horas depois. Não teria problema, a mulher tomaria um rodo, um pano de chão e faria o serviço, uma vez que passara o dia todo como uma rainha que tinha tudo nas mãos. Não conhecia o prazer de conquistar seus pertences com o suor do próprio rosto. Estava mais que na hora de usar seus conhecimentos do estudo na prática. Nem que fosse para ganhar um ou dois salários mínimos num pacato escritório de contabilidade.
No entanto, Melissa nem passou em frente a porta daquele banheiro. Escovou os dentes no outro, só para não ter que ver um serviço pendente. Numa casa grande, mesmo só com três moradores, um banheiro era pouco. Sorte a dela, caso contrário veria uma poça de lama nojenta e grudenta que se arrastou pelo canto da parede, desviando das pequenas poças de água, perfazendo um caminho sinuoso e determinado em busca de um cômodo mais seco.
No dia seguinte, como era esperado, Pedro perguntou de onde viera o novo quadro de sua parede, antes de tomar o café da manhã e ir a escola. O pai se engasgou com um gole de café. Melissa deu uma gargalhada e intimou o marido:
− Agora explique ao menino, querido! Conte que gastou vá se saber quanto dinheiro para comprar uma obra de arte de um artista desconhecido para me agradar.
− Eu não comprei nada, amor! Eu saí as dez e meia da noite da empresa normalmente e estava uma chuva daquelas! Então corri ao estacionamento no outro lado da rua apanhar meu carro, escorrei e... – ele deu uma pausa, cerrando os olhos numa tentativa de concentração inútil – Não me lembro de ter chegado aqui. Quando me dei conta estava saindo do banho vestindo um robe de lã, morrendo de cansaço.
− Não gostei do quadro, mamãe. O menino é mal educado. A senhora me bateu uma vez que mostrei a língua e o menino estava mostrando a língua.
− Que ridículo, moleque. Vi o quadro ontem, o menino só está chorando, não está mostrando a língua! Termine logo seu leite, que seu pai vai te levar para escola.
O assunto por ora cessou quando a empregada veio recolher a louça do café. Deixava a cozinha em ordem antes de fazer a faxina do casarão. Vinha três vezes por semana, segundas, quartas e sextas, limpando diferentes cômodos por vez. Pelo menos a patroa não a incomodava com ordens, tipo “Traga-me um copo de leite morno, como uma colherada de açucar, mas tem que ser colher de chá, não de café!”
Vivian era magra e ágil no serviço doméstico. Tinha uma voz esganiçada com leve sotaque do interior. Adorava dançar enquanto espanava o pó. Os cabelos negros e longos giravam pelo ar, num movimento de vai e vem circular como numa máquina deixando a roupa de molho. Dessa vez ela limparia os quartos. Enquanto a patroa navegava pela Web no site da Marisa, à procura de novos looks para a estação outono e inverno, ela espanava e passava pano no quarto. Com muito cuidado limpava os objetos de porcelana. Em todos esses meses de trabalho nunca quebrara nada.
Antes de limpar o dormitório de Pedro, uma organização básica sempre se fazia necessária. Era inevitável ter que recolher brinquedos embaixo da cama e roupas amarrotadas sobre a mesma. O serviço corria sem contratempos, até a faxineira procurar riscos de caneta hidrocor na parede e se deparar com o menino loiro e bochechudo contemplando-a com aquele semblante carregado de sofrimento. O mal estar de Vivian foi imediato. Pela primeira vez interrompeu o serviço pela metade e se dirigiu a sala ofegante. Melissa detestou desviar o olhar do lindo casaco de lã em oferta para tentar prestar atenção à criada:
− Senhora, de onde veio aquele quadro no quarto do teu filho? – seu tom agudo fez os tímpanos da Sra. Ramos queimarem, espalhando um tom rosado em toda a face.
− Agora te devo satisfação dos objetos que são comprados pra esta casa?
− Perdão, é que vi um igual a ele na...Internet. Há vários quadros parecidos, todos de diferentes crianças chorando.
− E daí? Meu marido gostou e o arrematou num leilão. Só que eu odiei...
− Se estivesse no seu lugar me livrava dele rapidinho!
− Por que, posso saber?
− O pintor fez várias obras parecidas. Não lembro o nome dele. Sonhou com o inferno e as crianças são as que ele encontrou nesse sonho. Por isso todas estão chorando e sofrendo. ELAS ESTÃO MORTAS!
A dona da casa disfarçou um arrepio na espinha endurecendo ainda mais o rosto, de modo a parecer explodir de cólera:
− Qual o problema em comprar um retrato de um sonho?
− É que, segundo o que li, esses quadros são amaldiçoados! – seus olhos saltaram das órbitas ao pronunciar a palavra – Coisas horríveis aconteceram às famílias que tinham essas obras em casa. Os filhos pequenos, por exemplo, sentem um pavor maior. Uns dizem que veem as crianças nas imagens se mexendo, piscando ou mostrando a língua...
Melissa sentiu um espasmo de terror nos músculos que mais parecia um ataque convulsivo. A voz de Pedro durante o café da manhã soou no fundo de sua mente. Ordenou a empregada que voltasse ao serviço e ignorasse o quadro. Ela nunca acreditara em maldições, mas o tom de Vivian a fez esquecer totalme o site de moda.
Por outro lado não queria se desfezer da obra de arte só para dar um gostinho à criada. Resolveu mudá-la de lugar, expondo-a numa parede do escritório de Jurandir. Já que ele trouxe o quadro, que se acostumasse com ele. Além disso, o empresário pouco usava o cômodo, pois resolvia todas as pendências na própria empresa. De forma que nem as visitas de negócio o veriam, muito menos Pedro, que nunca mais entrava ali temendo levar outra surra, pois uma vez tirou da ordem certos documentos que o pai esquecera sobre a mesa.
Dois dias depois, numa sexta feira, Vivian foi limpar o escritório e se deparou de novo com o quadro; dessa vez o susto a fez derrubar um peso de papel, que se espatifou no chão. Melissa a flagrou recolhendo os pedaços do objeto inutilizado, o qual nem o Super Bonder o salvaria.
− Por favor, me perdoe, senhora. Eu nunca havia quebrado nada...mas esse quadro, eu pensei que...
− Meu marido sabe que o deixei aqui, mas meu filho não. Quero que continue assim, Vivian. Se abrir o bico ao menino, aí sim vou ficar furiosa!
A empregada fez um gesto de zíper cerrando os lábios, com os dedos raquíticos e trêmulos. O acidente foi esquecido e a moça se dirigiu aliviada até o jardim da frente regar as plantas. Estranhou o fato da terra já estar úmida, como se alguém tivesse se adiantado no seu trabalho.
A noite, como normalmente acontecia, Jurandir chegou do trabalho após o filho pegar no sono. O homem da casa tomou seu banho e foi para cama. Dessa vez não trouxera nenhum objeto diferente e com uma história tenebrosa. Enquanto roncava absurdamente, a mulher foi para cozinha tomar um copo de leite. Por alguma razão não pegava no sono. Passavam das duas da manhã. De certa forma a ladainha de Vivian a deixou perturbada, principalmente após trocar o site da Marisa por outro, com variadas lendas urbanas e contos aterrorizantes. A história dos quadros estava ali também. A maioria dos casos terminou com a morte das famílias com...fogo?
Ela não fumava, os fogões elétricos e usava lanternas no lugar de velas quando acabava a luz. As chances de um incêndio ficavam reduzidas. . . Mas nada era impossível a uma maldição. Devia ter se livrado daquela porcaria...
“Que bobagem!” Seu medo era irracional. O líquido branco caiu da caixinha para o copo. Ela ingeriu um gole. Já se sentia melhor... Então uma batida na porta fez seu coração dar uma cambalhota. O susto a fez derrubar o copo e sujar o chão. No entanto não havia ninguém na varanda. Mas o barulho era de um toc toc numa porta. Espere, pensando bem o som viera de outro lugar. Sim, era de alguém dentro do escritório. A janela estava trancada, como um invasor entraria lá dentro sem chamar a atenção?
− Quem está aí? – ela perguntou num fio de voz.
Silêncio. Ela chegou à cozinha com certo temor, era normal que começasse a ouvir coisas. Alucinação de sua mente. Ia em direção ao quarto, mas antes passou pela entrada do escritório. O quadro estava numa das paredes. Estaria mesmo amaldiçoado? Teria provocado aquele ruído? Não, decerto foi um mero estalo na madeira comum durante a noite devido a queda de temperatura, o qual seu medo o elevou a uma batida. Encarou a porta novamente; a testa suando.
Nessa hora a maçaneta girou, com um rangido metálico. Melissa levou a mão direita à boca segurando um grito de pânico. Tudo aquilo, se for só alucinação, era digno de uma camisa de força. A mulher cruzou os braços como se já usasse uma. Sentiu-se pelada numa câmera frigorífica. A questão seria voltar ao seu quarto e tentar dormir ou entrar naquela sala para se convencer que tudo estava bem? Se um ladrão estivesse ali dentro, seria louco o bastante só para girar a maçaneta e bater numa porta destrancada apenas para deixá-la com medo?
O interruptor ficava bem ao lado da porta. Ela só precisava abri-la e esticar o braço ali dentro alguns centímetros e clic. Que haja luz! E Melissa viu que a luz era boa e o escritório estava em ordem. No caminho até a parede oposta havia um sofá a direita e uma mesa larga a esquerda. Uma cadeira giratória com braços repousava por baixo dela. A janela exibia parte do terraço e acima um céu negro estrelado. O quadro do menino estava no mesmo lugar, intacto, na parede a direita, de frente para a mesa. Tudo estava normal, mas...cadê o menino?
Uma ilusão de ótica desencadeada pelo medo do desconhecido? O fundo da obra de arte era visível, mas sem o rosto triste. Então o som de um arranhão no estofado do sofá fez o pescoço da mulher se contorcer até o móvel. Uma mão pálida e gorducha se erguia atrás do braço mais distante do sofá. Dedos dançavam no ar até encontrarem o encosto. Realmente havia alguém escondido ali. Seu corpo foi se revelando aos poucos. Baixo, gorducho, trajando uma roupa comum nas crianças no século 19. Os cabelos loiros estavam arrepiados, como se ele tivesse acabado de acordar. Encarou os olhos de Melissa enquanto tateava a boquinha de lábios vermelhos, tão graciosa se não fosse a situação aterrorizante. O menino do quadro estava diante dela, em carne e osso, e ela perdeu a voz para gritar. As pernas congelaram, não a deixando correr.
− Vamos brincar? A senhora promete não bater em mim como faz com o Pedro? Sabe, já sofri muito, mas meu pai é adorado por muita gente. Ele quer te conhecer, Melissa. Venha comigo...
O pirralho esticou o braço em sinal de um convite tentador.
“Elas estão mortas!” – a voz de Vivian soou longe.
Tudo ficou escuro. A dona da casa cambaleou e desabou no canto da sala. Quando despertou os raios de sol já a tocavam pelas frestas da janela. Estava em sua cama. O marido lhe trouxe o café numa mesinha de colo, adornada com um botão de rosa. Nunca fora romântico assim, nem na lua de mel.
− Nossa, tive um pesadelo horrível! – ela tentava crer que não saíra da cama durante a noite e esperava que o marido confirmasse, mesmo estando aos roncos no horário.
Jurandir não demonstrou interesse no sonho, apenas sugeriu que o quadro que trouxera fosse transferido para a sala de visitas.
− Ora, mas você disse que nem se lembrava de ter trazido esse quadro! – retrucou ela, após digerir uma colherada de mamão.
− Era brincadeira, tá achando que tô doido, é? – brincou, dando-lhe um afago áspero no rosto. A mulher não gostou de seu toque e estremeceu.
− Sonhei que o menino da pintura saiu e andava pelo escritório. Falou comigo...
− Foi só um sonho, querida. Nenhum objeto inanimado pode se comunicar com alguém. E sei que não acredita em maldições ou castigo por maltratar seu filho.
− Como sabe que o moleque do quadro falou do Pedro?
− Apenas deduzi. Geralmente sonhamos com o que fazemos de errado. Uma forma do mal se voltar contra nós!
− De qualquer modo livre-se da pintura. Leve-a para a empresa e presenteie o funcionário que mais detesta. Alguém que mereça um presente de grego!
− Esse é o teu presente e não sairá desta casa!
Sua voz saiu rouca, mas firme e decidida. O romantismo acabou. O apetite também.
Quando chegou a cozinha, o filho já tomava o café, pão francês e bolachas de maisena. Mesmo num dia sem aula, o menino tinha o costume de levantar cedo. Ao lado da mesa, na direção da geladeira, uma poça de leite rodeada de formigas e um copo plástico trincado embaixo do armário.
− Você derrubou isso, moleque? – ela rugiu já erguendo o braço. De repente congelou, ao se lembrar que tomara um gole de leite na madrugada e derrubara o restante.
Pedro, pálido e retraído, consciente que seria espancado sem culpa alguma, apenas se preparou para o pior. Melissa cerrou os olhos e desabou numa cadeira. O jeito era limpar aquele resíduo de seu sonho antes que secasse e manchasse o piso.
Aquela pintura precisava sair da casa, sendo inofensiva ou não. Na luz do dia, tomada de coragem, mesmo com a ausência do marido ela foi ao escritório. O rosto do menino estava ali, com a mesma cara triste e as lágrimas escorrendo.
“Meu pai quer te conhecer, venha comigo...”
Ela encolheu os ombros com um calafrio. Se o pesadelo se repetisse, enlouqueceria. Negaria essa chance a qualquer força maligna que operava naquele objeto.
No meio da madrugada de sábado para domingo, ela esperou os homens da casa dormirem, vestiu um robe e se preparava para uma atitude ousada. Enquanto reunia forças, um rio escuro e espesso deslizava sinuosamente do banheiro no qual Jurandir se lavara até a porta do dormitório de Pedro. Como uma infiltração medonha, o líquido passou por baixo da barreira de madeira.
Melissa arrastou suas pantufas até o cômodo mais tenebroso da casa. Sem ouvir qualquer barulho que pudesse detê-la no caminho, escancarou a porta e acionou o interruptor. Ali se encontrava o quadro, do jeito que fora trazido. Ela o tirou da parede e o levou para o terraço aos fundos do casarão. Segurando-o o menor tempo possível, o apoiou em pé na parede da casa vizinha, num ângulo de uns trinta graus. Então tirou uma garrafa pet de álcool do bolso externo do robe e deu um banho na obra de arte. Agora o garoto derramava lágrimas de álcool. A mulher tirou do outro bolso uma caixinha de fósforos de outro bolso. Não tinha velas em casa, mas contava com fósforos. Afinal, o fogão poderia enguiçar a qualquer momento. Quando ia riscar um dos palitos num gesto dramático, uma voz a deteve, saindo pela porta dos fundos. A figura baixa, gorducha e loira se aproximou de Melissa carregando um galão de combustível. Decerto passara antes pela garagem onde Jurandir guardava seu BMW:
− Você NÃO está aqui, seu pirralho do inferno! É só uma alucinação.
− Sério? E se eu chamar o meu PAI agora? Será que você vai crer em mim?
Melissa sentiu um temor crescente, prestes a explodir. Porém não iria desmaiar de novo. Colocaria tudo a perder. Riscou o fósforo. Uma chama iluminou seu rosto pálido e pingando.
− Vou queimar essa merda e você voltará para o inferno!
− Errou, querida. Quem vai para o inferno é VOCÊ!
Num piscar de olhos, o menino do além percorreu a distância de cinco metros que os separava e a mulher tomou um banho de gasolina. Quando conseguiu gritar, já estava com o corpo em chamas. As labaredas subiram transformando-a numa tocha humana. Caiu e rolou no chão de cimento, mas o fogo era incontrolável. O garoto loirinho sorriu de satisfação e voltou pelo caminho de onde viera.
No dia seguinte, o corpo de Melissa carbonizado foi encontrado pelo marido, que ficou horrorizado e traumatizado. Definitivamente Pedro não poderia ver aquela cena quando acordasse. Pelo menos aos domingos desfrutava mais da cama. Jurandir se encarregou de chamar as pessoas certas e limpar o local. Não podia esquecer um detalhe: a mulher morreu agarrada ao quadro que garantira que fora ele quem trouxera. O quadro estava intacto entre os braços torrados e fumegantes da vítima como um ursinho de pelúcia.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Além da fogueira
HorrorBerilo Montez adora contar histórias de terror. Quando vai para um acampamento com seis amigos, vê a chance ideal de fazer o que mais gosta. Mas o que parece um ser alienígena cai na mata e começa a atacar o grupo de Berilo, transformando a diversão...