26 - Carim

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Praertis quebrou o jejum com bolos e pães que Carim encontrou na despensa. Não eram pastosos e duros como os durias estavam acostumados a provar.

— São quebradiços e esfarelam na boca, como devem ser. Os melhores que já comi, sem dúvida. Agradeça o padeiro por mim.

— Não agradeça ainda — disse Carim. — Estas foram apenas as primeiras fornadas. O poço ainda está frio e muito sujo. Com o tempo teremos bolos e pães ainda mais gostosos, além de muitos outros itens.

O líder da guilda dos artesãos levou Praertis para o aberto. A manhã estava clara, com poucas nuvens. Uma leve brisa morna vinha do norte, levando vagarosamente as altas nuvens para longe. O chão estava quase todo coberto de areia, e Carim ouviu o rei soltar um suspiro ao colocar os pés nela.

Acólitos iam e vinham trabalhando sem interrupção. Retiravam pedras, limpavam os caminhos, assentavam tijolos de areia em paredes, desenhavam escadas, e principalmente, escavavam a terra.

— Como pode ver, meu rei, há muito para se fazer. Ainda não tenho certeza qual cidade era esta, e não sei se um dia saberemos de fato. O certo é que estamos nos territórios da Segunda Casa. Mas pela arquitetura do pouco que encontramos diria que é uma cidade tardia, esta parte dela pelo menos. Então pode ser que tenha pertencido a outra Casa, fugindo do sul.

— Isso faz alguma diferença? É a primeira cidade duria no aberto em séculos. Não importa a casa que a construiu. Nós estamos aqui agora, vamos erguer nossa própria cidade, uma bela fortaleza, e governarei todo o reino duria daqui. Não preciso saber de que casa era.

E pensar que esse foi o melhor que encontrei, pensou Carim.

— De certa forma você tem razão. Mas num primeiro momento, se eu souber de que Casa pertenceu, ou quando foi construída, posso focar as escavações num único ponto, pois saberei o que buscar. Hoje, estamos cavando para todos os lados, e por muitas vezes trabalhos de horas se mostram infrutíferos.

— O que pretende encontrar?

— Tesouros!

Praertis riu, mas depois ficou em silêncio, vendo que Carim falava sério.

— Tesouros? Que tipo de tesouros?

— De qualquer tipo. Tanto pedras preciosas quanto pratos simples de vidro. Panos, armas, até livros, quem sabe? Qualquer item encontrado pode guardar segredos perdidos.

— Já encontrou alguma coisa? — perguntou Praertis.

— Alguns poucos objetos. A maioria de estudos, na oficina do poço. Aliás, todos os túneis dessa parte da cidade já foram encontrados. E acredito que teremos espaço suficiente agora.

— Espaço suficiente?

— Sim, para nossos futuros visitantes.

Praertis olhou para ele de cima. Sua voz era firme, mas sua voz o traía.

— Que visitantes? Quem está vindo?

Ele teme perder o posto que lhe dei. É bom que mantenha esse temor.

— A notícia já se espalhou, vossa alteza. O retorno dos durias já é conhecido em quase todo o subterrâneo, e muitos querem se unir a nós. Outros ainda estão desconfiados, mas virão com o tempo.

— Algum desses nossos visitantes que possa — Praertis baixou a voz para um sussurro quase inaudível, — reclamar a minha posição?

— De modo algum. Eles possuem líderes, sim, pessoas que os governam como podem. Mas as linhagens se perderam, herdeiros sumiram com o tempo. Mesmo que um outro possa dizer para quem quiser ouvir que é descendente direto de alguém, ninguém acredita de fato.

— O que irá fazer eles acreditarem em mim, então?

— Sua adaga.

Praertis passou a mão pela cintura. Ela não estava ali.

— Guardei a salvo — disse Carim, conduzindo Praertis para o topo de uma colina de areia.

Era o maior monte que havia, com exceção da sólida colina do leste. De lá podia-se ver os outros montes, menores, assim como um vale seco protegendo a cidade como uma muralha invertida, e outras colinas avermelhadas mais além.

Alguns degraus já estavam desenhados na areia, mas grande parte ainda era apenas pedras soltas. O topo estava sendo aplainado por alguns acólitos, e blocos de areia estavam empilhados em um canto, esperando para formarem o piso do local.

— Aqui será a sala do trono. A previsão é que esteja pronto em poucos dias, antes da chegada das primeiras caravanas. Você as receberá aqui. É bom estudar bem a cartilha que lhe fiz. Bons modos podem nos abrir portas neste momento. Estamos trabalhando para que a cidade pareça enorme e bela aos olhos dos outros. Vamos ter que usar da primeira impressão deles à nosso favor. Não temos mãos suficientes para levantar uma cidade habitável de verdade agora. E muito menos destruir esse monte de pedra.

Praertis olhou para a colina que subia no leste, mas alta que o monte que estavam, bloqueando toda a visão deles.

— A cidade está abaixo dela? — perguntou ele.

— Assim espero. Tivemos sorte ao encontrar essa parte meio descoberta. Uma chuva forte caiu por aqui. Diria até uma tempestade, se essa palavra não causasse calafrios em todos nós. E essa parte da colina se desmanchou, expondo uma areia antiga, bem preservada. Um acólito de passagem a encontrou. Já faz alguns anos que os envio em missões de busca, e essa foi a primeira vez que realmente encontramos algo que servisse. Minha primeira pergunta foi sobre o poço. Escavamos dia e noite, até que finalmente o encontramos. Não era bem o que esperava, mas já era muito mais do que os buracos no chão que eu tinha lá nos túneis. Pode ter sido um golpe de sorte, ou pode ser o Primordial nos sorrindo. O importante que agora temos um poço, uma fortaleza, e um rei.

Praertis passou a mão pela nuca. Pequenos grânulos de areia cinzenta caíram de sua mão.

— Estou me desfazendo. Está quente aqui ou sou só eu?

— Creio que o calor atinja todos nós, em maior ou menor grau — disse Carim.

— Mas me explique uma coisa, mestre artesão. Se fomos feitos para o aberto, para esta temperatura, por que estamos sentindo calor?

— Nós simplesmente não estamos acostumados ainda. Nascemos e crescemos no frio dos túneis, com pouco ou nenhum calor. Ainda deverão passar alguns meses, talvez até alguns anos, para nos acostumarmos com o calor verdadeiro. E é por isso que aconselho vossa alteza a continuar dormindo naquele quarto. As noites ainda são frias, mas o poço nos mantêm aquecidos.

Eles voltaram para baixo, onde o ar parado era mais fresco.

— E a areia, Carim? Teremos mais areia em breve? Quanto tempo até termos um deserto de verdade?

Essa é minha maior preocupação, e meu maior medo.

— Não dá pra fazer areia, você sabe. Ela aparecerá naturalmente, com o fortalecimento do domínio. E é por isso que temos que tratar muito bem nosso futuros convidados. Quanto mais durias reunidos, mais aumenta nosso poder, e maior é nosso domínio. Quanto mais durias, mais areia. O deserto é consequência.

— Sim, me alegro em saber que viverei para ver um deserto, como nos tempos das nove casas. Só mais uma dúvida, antes que você volte para o poço e me esqueça novamente. E os cavos? Eles não podem simplesmente surgir algum dia e destruir tudo isso?

Ah, me precipitei, esta é minha maior preocupação e meu maior medo.

— Eles podem. Mas temos que nos arriscar. Ultimamente eles não caminham muito pelo deserto. Esta pequena cidade é apenas um grão de areia entre colinas nuas. Depois que nos estabelecermos aqui podermos expandir. E aí então, acredito eu, chamaremos a atenção deles. Mas até lá, teremos tempo de nos preparar direito.

É isso que peço ao Primordial todas as manhãs. Ou a preparação de anos pode sumir no vento em minutos. É preciso arriscar, sim. E eu estou arriscando tudo.

O Quarto ReinoOnde histórias criam vida. Descubra agora