9 - Arail

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Este rio é realmente grande, pensou Arail, olhando para fora de sua cabine.

Até o entroncamento o tal grande rio não havia surpreendido muito, e o príncipe começou a achar que o nome se referia apenas ao seu comprimento. Após o entroncamento, quando dois outros rios se juntavam em um emaranhado de ilhas, o título se tornou merecido e Arail pode mesmo ver que era imenso em todas as dimensões.

Em alguns trechos não é possível sequer ver uma das margens, apenas uma linha verde no horizonte.

Mesmo assim, a água não era muito forte, como outros rios que Arail já havia visto. Era como se estivesse deslizando por uma extensa planície, calmo, porém constante.

Muitos barcos e canoas cruzavam o caminho do barco real, levando mercadorias, pessoas, pescando ou simplesmente passeando. Haviam diversos tamanhos, mas nenhum tão grande quanto o barco real da quarta dinastia. É a nossa beleza dos rios, e duvido que já tenham visto tamanha beleza navegar por essas águas.

Sua cabine era simples e pequena, de teto baixo e com janelas para os quatro lados, fechadas por folhas duplas. Havia uma cama para casal no centro, um pequeno armário que ia até o teto, e uma mesa lateral com um banquinho. Tudo cultivado das árvores gêmeas que formavam o mastro da popa. Ao lado da mesa estava a única entrada da cabine, um alçapão com uma escada em caracol para a sala abaixo e, depois, o convés.

Arail desceu para fazer a primeira refeição do dia. A sala era maior, mas não muito, e tinha um formato oval, com apenas duas janelas, uma de cada lado. Na parede da frente, havia um vão por onde vinha a escada do convés, fechada por uma pesada porta. Na de trás havia uma mesa com dois longos bancos, onde poderiam caber, não muito confortáveis, seis pessoas. Abaixo das duas janelas haviam armarinhos que serviam também de mesa de apoio.

Canilo, um de seus quatro guardas que o acompanhavam, estava em uma delas cortando frutas e retirando suas sementes.

— Bom dia, senhor. Conseguiu dormir com a presença do rio?

— Bom dia Canilo. Quase nada para falar a verdade. E sonhei que estava me afogando, e depois descobri que não estava me afogando, eu morava dentro do rio. Bizarro.

— Como todos os sonhos. Aceita um melão, senhor?

— Obrigado.

Ele sentou para comer, mesmo não estando com muita fome. Não estava acostumado a passar tanto tempo dentro de um navio, e embora estivesse em uma árvore neste momento, sentia falta da floresta, do cheiro, dos sons, do farfalhar das folhas e da luz do sol que conseguia encontrar uma brecha, deixando tudo mais bonito. A floresta da ilha de Ravoi é mais antiga que a nossa, será que vou me sufocar nela?

A porta se abriu e Pecovu e Eraval entraram rindo.

— Onde está Merveno? — perguntou Arail.

— Ele foi o último a acordar — respondeu Eraval.

— E o que isso tem a ver?

— Combinamos que o último a acordar deveria trocar a latrina. Ele tem feito isso todos os dias até agora — disse Pecovu.

— Não seria mais pedir para um dos morcos fazer isso?

— Capitão nos faria remar no lugar do morco enquanto isso, tenho certeza — disse Canilo, colocando um cesto de frutas na mesa. — nunca o vi com tanta vontade de voltar.

E não estamos todos?

— Ele sempre diz que a próxima viagem é que é a última, dessa vez ele acha que a última finalmente chegou — disse Pecovu abocanhando metade de uma maçã.

Continuaram comendo e conversando até que a porta se abriu e Merveno entrou, afobado.

— Bom dia senhores, estou morrendo de fome. Deixaram alguma coisa para mim?

— Só se quiser ração de morco, lá no porão — disse Eraval, pegando as últimas frutas que estavam na mesa para si.

— Deixem disso, tem mais aqui sim — Canilo abriu um dos armarinhos e retirou outro saco de frutas. — Só que sobrou apenas um melão, e ele é meu, se quiser, deve ter lá embaixo, mas eu não vou buscar.

— Sem melões para mim hoje então.

Era tradição desde os tempos da primeira dinastia o rei ter sempre consigo quatro guardas de confiança, que o acompanhavam desde pequeno, e só o deixavam na morte. Eram acima de tudo amigos do rei, ou no caso, do príncipe. Os cinco ali cresceram como irmãos, estudando juntos e trainando juntos. Conheciam muito bem um ao outro, suas qualidades e fraquezas, e, mais importante, confiavam um no outro cegamente.

Após a primeira refeição eles jogaram dados para matar o tempo, contaram histórias, Merveno pegou um alaúde de oito cordas e cantou algumas canções. No meio da tarde comeram novamente algumas frutas que haviam sobrado de manhã.

— Buravo que deve estar bem — disse Pecovu, — tendo toda uma floresta para explorar, palácios para conhecer, mulheres por todos os lados querendo um pedacinho do estrangeiro.

— Com toda a certeza está melhor que nós — Merveno dedilhava algumas notas pensando no que tocar em seguida. — Essa viagem está tão tediosa que não vale nem meia canção.

— Na próxima vez mando vocês no lugar de Buravo, então — disse Arail. — Ter que enfrentar o rei Iruva não é tarefa fácil. Não sabemos ainda pelo o que eles está passando, e duvido muito que envolva mulheres ou passeios por palácios. Segundo a mensagem que chegou hoje de madrugada ele passou o dia tentando uma conversa com Iruva. E me alertou para não esperar uma festa de boas-vindas quando chegar. Você ainda pode ter muito material para canções antes de voltarmos Merveno.

— Sem querer discordar de suas ações, meu príncipe — começou Eraval um pouco sem jeito, — mas o senhor não acha que foi muita ousadia enviar Buravo como seu emissário? Digo isso por ele ser, bem, o senhor sabe.

Eu deveria ter enviado você, é isso que gostaria de sugerir?

— Não vejo dessa forma. E não sabemos de fato se ele é mesmo ou não o que muitos dizem dele. Desde sempre ele me é um amigo fiel e executa muito bem todas as tarefas que já lhe designei, sem exceções, e dessa vez não parece que foi diferente. Ele é alguém de baixa origem que cresceu por seu mérito.

— Entretanto Iruva poderia entender este gesto de outra forma. Como se estivesse zombando dele, ou algo assim.

— Pode ser que sim. Ou pode ser que eles não façam ideia da origem de Buravo por aqui. E querem saber? eu não me importo com o que eles acham. Confio nele tanto quanto confio em vocês. E vocês deveriam fazer o mesmo.

Todos sentiram neste momento o barco diminuindo a velocidade e virando para bombordo.

— Parece que chegamos — disse Canilo, olhando pela janela.

— Já não era sem tempo.

Arail também foi até a janela dar uma olhada. A floresta era basicamente a mesma que deixara para trás, e as árvores tão altas quanto. De longe ele viu Buravo em pé na doca, os esperando.

No fundo Eraval pode ter razão. E se Iruva acha que estou caçoando dele? Será preciso caminhar na roseira se eu quiser sair daqui com meu prêmio.

O Quarto ReinoOnde histórias criam vida. Descubra agora