12. Ato do Desapego

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NÃO SEI MEDIR O TAMANHO DA ABSTINÊNCIA MÓRBIDA QUE ME MOTIVOU A INGERIR TODOS OS PSICOTRÓPICOS QUE ESTAVAM NO BAÚ DE MEDICAMENTOS DE TIA CARMEM.

Na hora nem pensei nas consequências, eu só pensava que os excipientes contidos nos comprimidos calariam as vozes em minha mente. E se eu calasse as vozes eu paralisaria tudo: Os pesadelos pós-traumáticos, as memórias detestáveis da minha infância, a avalanche de sentimentos negativos, enfim... Na minha cabecinha oca era esse o caminho que eu deveria seguir para que todos os meus males se dissipassem.

Mas logo depois veio um sentimento de remorso devastador e um montão de perguntas que me fizeram acordar para vida e enxergar o tamanho da burrada que eu estava fazendo. Que direito eu tinha de ser tão egoísta assim comigo mesma? Que direito eu tinha de interromper a própria vida de uma forma tão horrível?

Foi então que titubeie imediatamente ao banheiro com o dedo indicador introduzido na boca e regurgitei os comprimidos no vaso sanitário em um vômito azedo, com um aspecto nojento. A mistura do azedo do vômito com o amargor do arrependimento me provocou sede, muita sede. E também um gosto na boca de laranja estragada. Uma dor quase insuportável formou-se na boca do meu estômago e demorou a passar. Cambaleei grogue até a cozinha, abri a geladeira e bebi o restinho de leite UHT que estava na porta. Péssima ideia! Comecei a ter uma nova sequência de vômitos assim que o leite chegou ao estômago e ali por pouco não perdi os sentidos. Foi sorte eu ter encontrado forças para abrir a torneira e lavar a boca. E então, mais calma e com o corpo reclinado no balcão da cozinha, fiquei a observar o líquido amarelado e hediondo expelido pelo meu organismo escorrendo pelo ralo.

Só então me ocorreu de que já havia estrelas no céu e que o apartamento estava totalmente fantasmagórico. Sentia-me como um espectro, incorporada à escuridão. Então uma luz se ascendeu na sala. Era tia Carmem chegando do bazar solidário. Ela pousou as sacolas que carregava consigo no sofá e abriu um sorriso por me ver ali na cozinha. Afinal, eu estava há dias trancafiada no quarto e de lá não queria sair nem por decreto. De imediato ela não notou que eu estava sob o efeito de medicação. Daí para frente, as únicas coisas das quais lembro foi de ter tido um pouquinho de conversa com ela e depois retornado para o meu quarto com a vista embaçada. Sei que tranquei a porta e liguei o ar-condicionado. Depois deitei na cama, tapei os ouvidos e esperei que o pior acontecesse. Fechei os olhos quando as vozes começaram a ficar altas demais na minha mente. Devo ter apagado porque quando abri os olhos outra vez eu estava cercada pele equipe socorrista do atendimento de emergência enfiando um tubo de borracha no meu nariz.

Fiquei hospitalizada dois dias a partir de então. Um total de quarenta e oito horas recebendo em média 500 ml de soro injetável a cada seis horas e um sermão periódico de tia Carmem a cada dez minutos. Segundo ela, a medicação intravenosa expeliria só o veneno contido no meu corpo. Já o veneno da alma só sairia com muita oração. Portanto, de tempo em tempo a gente rezava o santo terço juntas. E esse era o momento que eu mais sentia vergonha de mim mesma, pois eu ainda não conseguia descrever com exatidão as motivações que me levaram a beira do abismo no qual fui jogada. A autocrítica, a expectativa, a insatisfação, as exigências, a solidão... Será que a intoxicação exógena foi apenas uma tentativa desesperada de extravasar ou seria uma tentativa desnaturada de consertar algo rompido e fragmentado?

O médico plantonista nos explicou por alto meu diagnóstico clínico, enquanto atualizava rapidamente o meu prontuário com algumas últimas observações.

— Você ingeriu uma quantidade anormal de medicamentos. E embora você tenha expelido uma quantidade considerável no vômito, a ação não foi suficiente para reverter os danos em seu organismo provocados pelos agentes tóxicos. Você teve muita sorte de não ficar com sequelas, minha jovem.

O Antidepressivo Amoroso Perfeito (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora