É quando os cantores saem do transe e olham ao redor. Abismados pela presença da menina, se entreolham e conversam entre si, tentando buscar uma explicação.
O gato salta ao colo de Mariá e mia alto, numa provocação. Um cantor desmaia. Outro grita. Um terceiro se emudece, de queixo caído.
Mariá, altiva, caminha ao altar e ali deixa a boneca e o gato. O déspota foi derrubado. O trono está vago e não será Mariá quem se habilitará a ocupá-lo. Dando as costas, inicia o percurso de volta à saída do Templo, sob os olhares e questões dos supostos sacerdotes.
"Aonde pensa que vai, menina?"
"Adiante!", Mariá proclama, avançando mais um passo.
Pelas portas do Templo escancaradas, podia-se ver que algo estava diferente. A menina de sorriso travesso que dali saía, o vislumbre do gato, um trono vazio e os desesperados sacerdotes davam algumas dicas do ocorrido.
A cidade se desmoronou no mesmo instante — quando uso "desmoronou", trato de maneira figurativa. As paredes cinzentas continuaram, bem como as indústrias e as ricas paredes externas do Templo. O que mudou foi a forma de vê-las, agora sem os filtros deixados pela ilusão de uma gigantesca divindade em um gigantesco Templo.
Os sorrisos incomodaram. Todos saíram das fábricas correndo, se aglomerando na praça onde o rapaz raquítico morou.
O ateliê manteve-se de pé, as pinturas mais firmes que nunca. Pareciam brilhar ainda mais, como se desesperadas para dali sair.
Em um dia da queda da divindade, apareceram os primeiros cidadãos sem emprego da história do país. A eles Mariá mostrou a feitura de telas e a pintura de quadros; destes afazeres os cidadãos tomaram aqueles de seu próprio gosto. Puderam escolher também os alimentos que fariam, as casas que construiriam, os tecidos que teceriam, nada destas designações cabia mais a um terceiro.
Em dois dias, as pílulas acabaram e não mais foram produzidas. Pouco a pouco, os sorrisos desapareceram e foram substituídos por toda a sorte de expressões. Parece até que os rostos mudaram, veja só!
Em pouco tempo surgiram escolas, onde agora conta-se aos infantes sobre aquele antigo país, resguardando sua memória e tentando construir um algo futuro. Até hoje alguns cidadãos se afundam na procura da fórmula perdida da pílula como aqui contam sobre o Santo Graal. Outros construíram mil outros meios de alcançar aqueles sorrisos eternos, sempre fracassando.
Destes resta Mariá, que nunca revelou ao povo sobre o verdadeiro desenrolar da queda da divindade. Guardou como seu segredo, apenas passando para as telas que pintava a imagem que viu no espelho.
De corpo esguio e borboletas no cabelo, o mais travesso autorretrato.
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Mariá
Short StoryAcredito que você, como leitor versado que suponho ser, já deve ter passado por relatos históricos de todo tipo. Sou obrigada a dizer que este relato não é como os outros, não é daquelas histórias escritas nos livros e inscritas no que se estuda sob...