Da divindade (e do que Mariá descobriu)

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Um desconhecido de cabelos e barba brancos parou ao lado de Mariá. Olhou a jovem de soslaio, mirando bem as pouco discretas borboletas em seu cabelo. Aposto que também notou como Mariá não sorria da maneira escancarada como fazia todo o povo.
Mariá também o olhou de soslaio. O homem portava o maior de todos os sorrisos que já vira, chegando a ter uma aparência assustadora. Dali sua fala sai, com a voz doce e calorosa: "Menina, o que tu fazes aqui?"
Mariá responde na mais ingênua sinceridade: "Vim buscar meu gato."
"Por que não sorrides?", o homem questiona, e é quando Mariá se dá conta do deslize que cometeu. Havia parado de forçar desde a entrada no Templo, e por isto foi notada. Sua resposta foi firme e bem enfática:
"Não tenho motivos para rir neste momento. Estou apreensiva, não feliz."
"Deves ter esquecido de tomar sua pílula hoje... Por sorte, sempre carrego algumas comigo".
O homem meteu a mão no bolso do paletó e dali tirou os já conhecidos comprimidos. Ofereceu a Mariá, portando consigo um sorriso daqueles convidativos. Delicadamente a menina proclama sua recusa:
"Não, obrigada. Estou apreensiva, não doente". Emenda numa pergunta, talvez não a mais adequada, mas aquela que nós mesmos estamos formulando neste momento: "És um farmacêutico?"
O homem ri. "Não, jovem tola. Sou a divindade".
A tal divindade ergueu os braços, provavelmente esperando uma saudação ou reverência de Mariá. A menina nada fez, além de questionar — como já podemos esperar do habitual de nossa protagonista.
"Como pode ser a divindade? Tu és apenas um homem de cabelo e barba brancos como muitos!", seu rosto se contorcia em dúvidas.
O sorriso então se tornou por demais vitorioso. Apesar de surpreso pela pergunta, ele já tinha a resposta na ponta da língua (como se houvesse ensaiado a vida inteira à espera deste momento) e tratou de soltá-la.
"Observe, menina. O espelho mostra a divindade", e virou-se para a parede de onde pendia o espelho que aqui descrevi.
Mariá observou e, de fato, viu o homem ali refletido. Mas também se aproximou, curiosa como era – para a sua sorte e o desespero do tal homem.
Pois, além da barba rala e da postura ereta e o porte masculino, apareceram os cabelos com borboletas e as pernas magrelas de Mariá.
O homem tomou um susto que lhe abriu a boca e fez recuar. O sorriso pouco resistiu à nova e intrigante expressão incrédula.
"Retire-se, garota!", ele ordena.
"Não!", Mariá insiste. "Se no espelho está a divindade, também sou eu divindade!"
Enfurecido perante o desafio, o homem avança sobre Mariá. Ágil, a menina desvia e busca refúgio sob um dos bancos.
"Teimosa! Será banida deste país! Será esquecida, é o que queres?"
Mariá não sentia medo. Pelo contrário, estava segura e confiante de sua posição, com toda cautela se esgueirando de banco em banco. Como pano de fundo para esta singular perseguição, os homens continuavam seu cântico sem sequer desafinar.
Oito.
Cinco.
Três.
Mariá deixa os bancos e toma as cortinas como porto seguro. Não eram um esconderijo tão bom, mas ali ganhou uma vantagem: a visão do extenso corredor aos fundos do Templo, até então escondido pela escuridão. Num vislumbre teve a ideia de que as figuras ali presentes eram folhagens de árvores, caracterizando um jardim ou bosque. "Ali deve haver uma saída!", concluiu.
Mariá teria conseguido fugir por ali, sim, se ao tentar correr não tivesse tropeçado no pesado tecido das cortinas. É quando cai, então se tornando um alvo fácil para seu perseguidor.
Na defesa de sua companheira, o gato passa numa carreira só, deixando arranhões nas pernas do homem. Este se assusta e berra ao animal, como se o conhecesse: "O que fazes aqui?". E seu ódio volta ao animal, tentando de todos os modos agarrá-lo. Dali não imagino as terríveis agressões que cometeria, mas Mariá pensou logo em extremos:
"Por que quer matar meu gato?"
"Não é teu gato! É uma praga!"
Não sou a mais versada em história, mas acredito que nosso país nunca viveu uma praga de gatos. Mariá também não tinha ciência de nenhum acontecimento do tipo em seu país. Sendo assim, temos duas opções: tomar praga como um xingamento qualquer, força de expressão, ou aceitar que para o tal homem aquele gato poderia ser o expoente de algo muito maior, que se alastraria como infestação. Acredito com mais veemência nesta segunda.
Em suas escapulidas, o gato salta ao espelho – de novo não poderemos dizer se intencionalmente ou por caso. O fato é que o ornamento não sustentou o peso do bichano e desprendeu-se, despencando da parede e se espatifando em mil cacos no chão.
Foi como se o tempo tivesse parado. Algo ficou no ar, não sei se uma magia real ou a força que o ar soberbo do homem e daquele espaço provocavam. Mariá respirou profundamente. Era a sua vitória. Alguém tão supostamente grande não poderia se mostrar por fragmentos e restos.
A divindade, que agora já posso chamar de falsa divindade, fugiu pelos fundos do Templo. Mariá nunca mais o viu, tampouco sabe para onde foi — talvez tentar governar um outro povo, de outro país, que ainda procure por sorrisos fáceis e constantes.

MariáOnde histórias criam vida. Descubra agora