SEIS

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Dois meses se passaram e eu já estava matriculada no tal colégio. Meu pai diz estar tentando parar de beber mas eu ouço a porta de casa abrindo de madrugada, ele sai. Eu tenho tido sonhos com aquele dia. Eu estou no banheiro do colégio com a Molly no chão, com o rosto sujo de sangue e gritando "Olha o que você fez!" então eu olho pras minhas mãos e o pedaço de espelho está lá... pingando o líquido vermelho que é o mesmo do rosto de Molly. Ela está sofrendo e eu nunca faço nada. Ninguém chega. Ela morre sozinha.

Esse sonho me atormentou por dias e dias, eu já nem me importo mais. As vezes penso na cicatriz(parecida com as que têm em meus pulsos) que deve ter ficado abaixo do olho esquerdo de Molly Sabino, vai estragar com aquela beleza angelical com toda certeza.

Ainda não sei como devo me sentir diante disso.

Acordo cedo pra fazer café quando percebo que não tinha pão nem pó de café o suficiente. Visto uma blusa de frio, faço um rabo de cavalo e pego o dinheiro que guardo num pote em cima do armário da cozinha.

Meu pai dormiu na sala com a TV ligada de novo. Desligo a mesma e vou em direção a porta destrancando-a e deixando meus olhos se acostumarem com a luz do sol.

Era manhã de Julho, a grande maioria das pessoas está dormindo. Ele não.

Chego na padaria e me sinto observada. Olho ao redor e sinto um frio na espinha quando o vejo. Ele está sentado com um copo de café e o celular na mesa em sua frente. Ainda me encarando levanta uma das mãos e meio que dá um aceno sem acenar, sabe? Ignoro e entrego o dinheiro pra senhora e torço pra que ela traga meu pedido rápido e me tire dessa situação. Até que finalmente ela chega e me entrega uma sacola com o que eu pedi. Pego o mesmo e me viro tentando não olhar para quem eu sabia que ainda estava me olhando.

Saio da padaria e, junto com a brisa de manhã cedo, sinto uma mão no meu braço. Afasto a mesma com um tapa e então olho pra pessoa atrás de mim.

- Ei, Lala, não me viu alí?

Que palhaçada é essa? Ele nunca me viu aqui.

- Ham, eu...

- Eu não vi, mas fiquei sabendo o que aconteceu naquele dia... sinto muito, você tá bem?

- Por favor, para - peço.

- Como assim?

- Para de fingir que se importa - respondo. - Isso piora tudo.

- Eu só perguntei se você estava bem...

- Eu odeio essa pergunta, Leonardo. Ela é vazia, é falsa e não faz diferença pra ninguém se eu disser sim ou não - suspiro tentando me acalmar. - Aliás, você é a última pessoa que deve me perguntar isso.

- Entendi, foi mal aí - ele diz e sai andando no caminho oposto ao meu.

Por algum motivo eu sinto vontade de ir atrás mas tem até um nível de "trouxismo" e eu já o ultrapassei.

Eu vou para aquele colégio interno e sabe-se lá quanto tempo vou ficar. Eu definitivamente não posso pensar em Leonardo, Molly ou qualquer outra coisa que faça parte dessa parte da minha vida. Preciso urgentemente seguir em frente pois tudo que tinha pra sofrer eu já sofri. Preciso mudar, não posso continuar me destruindo.

Em fim chego em casa e meu pai está acordado. Noto alguma coisa na mesa e vou ver o que é. Se trata de uma calça jeans preta, uma camisa cinza e uma blusa de manga comprida da mesma cor.

- Isso é...

Deduzo alguma coisa quando meu pai completa:

- Seu uniforme. As aulas começam semana que vem - diz enquanto desfaz o nó da sacola de pão. - Bom dia! Ué, ainda não fez o café?

Respiro fundo e abro um sorriso convincente. Vou tentar aderir essa tática. Respirar e sorrir.

• • •

Andei treinando meu novo sorriso em frente ao espelho, espero que seja convincente o suficiente pra notarem que eu estou perfeitamente bem e já não preciso mais ser tratada como doente. Não quero remédios anti-depressivos, não quero ser obrigada a repetir orações memorizadas, não quero nada disso!, agora eu só quero que me deixem em paz.

Lembro quando não entendia e odiava pessoas que se obrigavam a fingir que não sentem nada, "estou bem" e sorrisinhos forçados o tempo inteiro. Pô, pra quê? Sabe, se você tá mal pode chorar, faz parte! Mas acho que a um tempo comecei a sentir inveja das pessoas que conseguem fazer isso. Engolir tudo a seco sem desmoronar não é fácil, eu sei, tenho tentado muito. Mas eu sou fraca. Ou era.

Amanhã começa as aulas e já tenho tudo pronto: malas, uniforme, playlist renovada, sorrisos e "estou bem, e você?" ensaiado. Também decidi que não vou mais esconder e sentir vergonha das minhas cicatrizes, é uma parte da minha vida que eu nunca vou me orgulhar mas também nunca vou me permitir esquecer.

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