Capítulo 7

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 Bati minhas asas com toda a força dos músculos que não existiam, experimentando o desdobrar das omoplatas, mas os membros em si eram dormentes - não totalmente dormentes, era muito complicado de descrever o novo sentimento. Elas eram ligadas ao meu espírito. Cada batida era como o pulsar do meu coração, algo profundo, ultrapassando as percepções da matéria.

A voo cheguei na pedra enfeitiçada num piscar de olhos, pousei ao seu lado e tentei erguer o pedestal, mas aquela coisa era muito pesada. E para piorar ainda mais, a droga de uma pilastra escondia o campo de batalha, com certeza faria sombra, um espinho no sapato que não podia ser removido sem derrubar um pedaço do teto. Então tentei remover a pedra dos adornos de electrum, só que estava tão bem soldada que era impossível de alguém arrancá-la sem um instrumento apropriado.

A luta contra o carrasco corria a ferro e piche. A mão do gigante, graças ao anjo, era engolida a passo de lesma - uma demora (muito bem vinda) que nos veio a calhar.

Os gêmeos, extremamente ágeis com as lanças idênticas, tentavam abrir os dedos da criatura perfurando a membrana entre as articulações. O aperto vez ou outra afrouxava, mas era refeito antes que Rudá conseguisse se libertar. Suas marcas acendiam e apagavam como uma luminária com o combustível quase no fim, um esforço inútil - o portal consumia toda a magia do bruxo antes que ele conseguisse conjurar qualquer feitiço. Estava completamente à mercê do Carrasco.

Droga, Droga, Droga.

Olhei para o meu amigo feiticeiro e na dor que aquilo causava, e comecei a esmurrar o pedestal com selvageria e frustração. Eu tinha que derrubá-lo, cada soco era um descarrego do ódio que me perseguia, cada calo dolorido uma lembrança do meu fracasso, eu estava prestes a perder mais um amigo, primeiro havia sido meu parabatai, agora... o desespero rasgava meus punhos aumentando ainda mais a insatisfação. Entretanto não obtive efeito algum.

Contornei o pedestal. Uma brecha pequena o separava da parede, o único espaço útil para eu puxar. A fresta mal coube minha mão inteira, o courinho das minhas juntas arranharam quando dobrei a palma, fazendo um pouco de sangue minar da carne rasgada. Apoiei o pé na parede e puxei o pedestal na direção contrária até ele ranger. Estava funcionando – graças ao anjo estava funcionando. Pus mais força até a coisa sair do lugar.

A estrutura resistia como uma criança emburrada, um cabo de guerra, pesado, muito pesado. Quanto mais força eu colocava, mais pesado ficava. Rudá, só mais um pouco, eu implorava. Como em resposta por minhas súplicas desesperadas, minhas asas bateram. Não, eu às bati inconscientemente. Elas apenas responderam. Elas estavam tentando ajudar, um toque divino, um toque a mais. Meus braços, pernas - e agora asas -, moviam-se unidos, um só ser, um Nefilim filho de Raziel e Ithuriel.

O pedestal caiu com um baque quebrando as soldas dos fios de electrum. A pedra enfeitiçada quicou adiante no chão. Catei-a antes que desse o último quique e levantei voo de volta à Rudá.

Estava pior do que eu imaginava, faltava menos da metade do antebraço para fora do portal, o punho estava quase tocando a orbe boreal.

Pousei ao lado do Magnus e mostrei-lhe a pedra enfeitiçada.

- Isso deve funcionar - eu disse ofegante.

Magnus franziu o cenho quando identificou o objeto. Ele também parecia ofegante. Moveu os dedos e chamas azuis explodiram. O fogo bruxuleante foi atraído pela fenda como que magnetizado. O portal girou com menos intensidade. Ele era mais poderoso que Rudá, sua magia era mais consistente.

- Faça o que tiver que fazer. Agora. Estou quase no meu limite - ele disse, e em seguida calou-se, ficando sombrio novamente. Senti a acusação por trás das palavras. Ele mal conseguia olhar na minha cara.

Segurei a pedra enfeitiçada em um dos braços, como um bebê recém-nascido e espalmei minha outra mão sobre o artefato.

Exatamente como da vez anterior o sol manifestou-se através do cristal. Uma explosão de luz maciça atravessou o salão, estourando feixes reluzentes por todo o recinto.

Magnus protegeu os olhos. Todos os outros shadowhunters também protegeram a visão, mas ao contrário do Rudá, a luz não os feriu.

Rudá...

Um rugido gutural estrondou vibrando o ar a nossa volta. As armas penduradas nas paredes chacoalharam pelo ribombo demoníaco. Cambaleei. Mas mantive a mão sobre a pedra. Em poucos segundos o chiado de carne sapecada abrolhou.

Algo caiu no chão, como um saco cheio de água. Tirei a mão da fonte de luz devolvendo o clima obscuro ao arsenal.

Rudá estava largado no chão como um boneco de pano – um boneco de pano ensopado de sangue.

Larguei a pedra no chão e disparei ao meu amigo. Suas marcas imbuídas de magia iniciaram o processo de cura, desta vez sem ser absorvida pela fenda. Apoiei sua cabeça com uma das mãos e me sentei no chão ao seu lado.

- Desculpa. Eu não sabia que isso ia acontecer. Você me conhece, às vezes eu sou um pouco explosivo – eu disse atropelando as palavras. Falava tão rápido que algumas saiam pela metade. Eu me sentia tão mal por tudo. – Eu não sabia que aquilo era uma fenda. Eu só queria voltar pra casa. Você entende?

Rudá esmurrou meu braço e debochou com um sorriso fraco.

- Idiota - ele disse com a voz embargada e dolorida. Mas sem nenhuma exaltação.

Sorri de volta, mas só o Anjo sabia o quanto sentia raiva de mim mesmo - e dele também. Porque ele não estava com raiva também? Como alguém podia ser tão "bacana", ele quase morrera, para mim era motivo suficiente para nunca mais querer olhar na cara do sujeito.

Rudá então esbugalhou os olhos, assustado. Tirou a cabeça da minha ajuda e quase a bateu no chão novamente.

- Sai. – ele gritou.

Que feiticeiro doido, pensei. Será que antes só estava se contendo?

- Sai daqui Eithur. Vai embora. – ele me empurrou.

- Me desculpa - tentei segurá-lo -, me desculpe Rudá. Calma.

- Se afasta daqui.

- Espera, você está muito ferido, deixa eu te ajudar. –Tentei colocar a mão de volta em sua nuca. Ele se desvencilhou afoito, mexendo o pescoço.

- Rudá. - tentei acalmá-lo, mas ele não permitia. - Não se mexa tanto.

Como o desmoronar do inferno o mal arrebentou pela fenda na forma de uma mão esquelética, desprovida de toda a carne, alva como neve, e agarrou uma das minhas asas. Fui puxado com um inseto indefeso, para dentro da fissura, que para minha surpresa ainda não havia se fechado. Enquanto a orbe boreal preenchia minha visão, pude avistar todos os Nefilins do salão correndo em minha direção.

O mundo pareceu ficar em câmera lenta.

Rudá entrou em convulsão, suas marcas, como nunca antes, queimaram como o fogo do purgatório. Envolto por sua magia, ele tomou a forma de uma serpente gigantesca, riscada de verde. Uma Sucuri, Rudá se transformou numa Sucuri gigante. Eu já havia visto uma antes, mas não daquele tamanho, não... assim.

Antes de a fenda se fechar por completo, a Sucuri arrastou-se para dentro e me abocanhou. Escuridão me envolveu em meio a saliva e presas. Uma visão de que nunca me esqueceria.

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⏰ Última atualização: Dec 31, 2017 ⏰

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