4. Fotos e Fantasmas

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"As memórias são traiçoeiras! Num momento você está perdido num carnaval de prazeres com o aroma da infância, os neons da puberdade. No outro, elas te levam a lugares onde a escuridão e o frio trazem à tona as coisas que você queria esquecer."

Coringa, A Piada Mortal

Me lembro de uma vez ter escutado meu pai dizer "O diabo está nos detalhes". Eu não lembro exatamente da situação, lembro de portas fechadas e da risada de mamãe, gostaria que a malícia não tivesse contaminado esse fragmento de memória. Ela faz meu estômago embrulhar.

O importante é que ele estava certo, novamente. Eu resolvi os detalhes, os criei e modulei entre os dedos com maços gordos de dinheiro e minha lábia hereditária. Criei uma morte martirizada para meus pais, algo que Tasha poderia se agarrar e chorar durante a noite. Ela sempre foi a emotiva.

II

22 de setembro, 2016

No dia certo nos vestimos de preto, ternos, vestidos e guarda-chuvas, a marcha fúnebre é uma onda negra de luto e eu sou uma bolha, um detalhe que tenta segurar o sorriso.

Caminhamos pelo morro esverdeado e molhado do cemitério. É um dia cor de ferro, vovó diria que sentiu a chuva chegar nos seus ossos... Ela morreu quando eu tinha 7.

Não finjo choro, apenas fecho a cara, é isso que eles esperam do único filho homem de Aaron Ives, com seus olhos cheios de julgamento eles me forçam a ser durão. Eu desprezo sua tentativa fútil sempre fui durão por natureza.

Os caixões pousam com cuidado na grama, logo ao lado de um buraco fundo, pelo menos 14 palmos abaixo da terra — isso se você acreditar no que as pessoas falam. Caixões custam caro, especialmente os de madeira clara e com detalhes em ônix, por dentro um estofado vermelho no interior, mas tudo bem, acredito que os mortos mereçam esse decoro.

Em certo momento, me chamam para dizer palavras de consolo, falar um pouco sobre os falecidos. Minha irmã demora para me deixar ir, sua máscara de maquiagem borrada pelas lágrimas mancha o preto do meu terno, que tiro ao me levantar e entrego à ela. Tasha se agarra como uma minha mãe se agarra ao filho recém-nascido.

Quando fico em pé diante as covas me sento pequeno, como uma criança olhando para um abismo. Todos nós vamos para o mesmo lugar depois de algum tempo, todos vamos para baixo da terra.

Eu minto com o rosto fechado, não sou capaz de produzir uma emoção definitivamente triste naquele momento. Eu digo tudo que querem escutar sobre papai e mamãe, eu falo encarando aquele mar negro com detalhes neutros. Meus olhos ardem nessa cor, fujo com os olhos na direção do verde aos meus pés.

O restante da cerimônia passa rápido, eu me mantenho distraído marcando tempos com meus dedos dentro do bolso e a cabeça baixa com olhos fechados, montando quebra-cabeças imaginários. As pessoas passam por mim e não me tocam. Agradeço com um abano de cabeça a cada palavra de apoio que eles pensam que preciso.

Eu não preciso.

Passo algum tempo com minha irmã, somos os últimos a sair, os soluços de Tasha me incomodam, mas tolero por ela.

O céu acima de nossas cabeças é cinza-aço pronto para chover, quase posso sentir as partículas de água pingando e umedecendo meu terno. Meus olhos se perdem no céu imaginando nuvens se fundindo para derramar frio sobre o cemitério.

Uma mão toca meu ombro com sutileza com unhas roídas pintadas em um azul sóbrio contrastando com a pele clara. Eu me sinto tentado a quebrar aqueles dedos finos. Encaro a roedora de unhas com o rosto fechado de um homem de luto pelos pais, ela veste o rosto cansado, um vestido preto sem-graça achado no canto do armário e os olhos avermelhados de tanto chorar. Os lábios secos e sem cor de Rose se partem para deixar a voz embargada e receosa sair.

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