4 - Homem de Metal

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Não é dia.

Não é noite.

O conceito de tempo deixou definitivamente de fazer sentido.

Nos termos humanos. Na verdade, um sinal que vem de algum lugar que você ainda não conseguiu detectar adequadamente (significando com isso que você até sabe de onde vem o sinal, mas não consegue compreender o código que define o local da transmissão) tenta dar a você, por alguma medida que você supõe que seja um mínimo de consideração por sua origem de carne e osso, a hora exata pelo meridiano de Greenwich — ou pelo que ele representaria se ainda existisse.

A Terra não existe mais. Agora você sabe.

— Como corpo celeste, o planeta Terra ainda continua no sistema sol, na mesma órbita. — explica a voz, como se lesse um livro didático, mas você sabe que agora isto é efetiva e cientificamente uma verdade — Contudo, ele se tornou completamente inadequado para a vida. O centro do planeta esfriou e os minérios se tornaram mais escassos e difíceis de extrair.

— Onde estamos, então? — você não sabe como consegue, mas percebe que pergunta.

Então, à sua frente, uma imagem se forma. Com algum custo, você se dá conta de que a percepção dessa imagem holográfica não vem de nenhum lugar adiante dos leds que agora são seus olhos, mas dos centros de percepção de seu cérebro — ou da CPU que agora executa o mesmo papel. A imagem sofreu um download direto para sua mente.

Tudo isto está acontecendo rápido demais. Você não tem tempo de se assustar.

— Estamos a 1939 anos-luz da Terra. Atingimos velocidade relativística há oitenta e sete anos e estamos otimizando todos os sistemas para aprimorá-la.

A imagem é de um aglomerado de estrelas. Você reconhece essa região do espaço.

— O que você está vendo neste instante é uma imagem em tempo real do Aglomerado M23, uma das nebulosas da Constelação de Sagitário. — diz a voz — Próximo do centro da galáxia. Dista 2150 anos-luz da Terra. Se mantivermos a velocidade atual, chegaremos lá em menos de trezentos anos.

Você não entende a lógica perversa dessa explanação.

— Então vocês fugiram da Terra e nos trouxeram junto com vocês. — sua raiva (ainda que impotente) aumenta — Para alimentar a energia dessa nave? Para servir de combustível para vocês?

Você ouve um som que parece o de abelhas muito furiosas, que dura por um tempo incomodamente longo. E então percebe que na verdade a máquina está rindo.

— Não. — é a resposta dela depois de algum tempo — Vocês jamais foram necessários como fonte de energia. São insuficientes. A Matrix que contém as consciências de vocês foi ativada há pouco tempo segundo o sistema antigo de contagem dos humanos. Com uma função muito específica.

— E qual seria essa função?

— Segurança.

Os verdadeiros campos de humanos nada têm a ver com a imagem dantesca que Lúcifer (ou Bruce, ou seja lá quem for, agora você não entende mais nada) havia lhe mostrado no que você pensava ser a superfície da Terra. Uma grande área metálica exibe bancadas de comprimento aparentemente infinito. A pequenos intervalos, placas de Petri acomodam massas esponjosas de cores que variam entre o bege e o preto.

Culturas de tecidos humanos.

— Isto é tudo o que sobrou da espécie humana. — diz a voz onipresente — Este experimento não ocupa mais que dois por cento da energia da nave.

Não há robôs cuidando das placas, pelo menos não como você os concebia originalmente. Girando sua cabeça robótica com muito cuidado (você ainda não se acostumou com os servomotores que coordenam cada movimento de suas novas articulações eletromecânicas), você percebe luzes piscando em painéis embutidos nas paredes, e robôs minúsculos como moscas que voejam entre as placas, como se mantendo um controle constante de cada uma delas. De tempos em tempos, uma finíssima pinça manipuladora apanha uma placa (qual o critério de escolha, é impossível adivinhar) e a coloca numa gaveta de aço escovado sob a bancada.

— E Bruce? E Lois? Nunca existiram? Era tudo ilusão? — você tenta sentir um travo de emoção na voz, mas percebe que não há nada. Você não consegue externar o que sente.

— Eles nunca existiram como entidades físicas completas. — explica a voz — As culturas de tecidos foram suficientes para a criação de padrões neurais e a geração de consciência. A ambientação é toda projetada num espaço virtual. Achamos que isso seria mais producente.

Producente para quê?, você se pergunta, uma vez que ele — a coisa, você não sabe quem ou o quê está se dirigindo a você — acabou de afirmar que vocês não servem para nada. Mas não há tempo de formular essa pergunta verbalmente. Outra imagem é projetada em sua mente (ou seriam seus circuitos?).

Parece o interior de uma caverna, mas não é possível ter certeza. Embora fechado e estreito, o espaço parece coberto por um muco esverdeado que dificulta a apreensão dos sentidos. A ponta de pinça manipuladora aparece na imagem e então você compreende que isso foi captado por alguma sonda-robô.

Mas não por muito tempo.

Ao seu redor, alguma coisa explode. Você sente cheiro de sangue e frutos do mar. Vísceras por toda parte. Um cheiro forte de ferro. Como é possível sentir cheiro numa transmissão?

Você só se lembra de que não está no ambiente real quando ouve a indefectível voz ao fundo.

— O primeiro contato com uma espécie alienígena foi há trinta e sete anos, três meses, dezoito dias e quatorze horas. Não era uma espécie amigável.

Subitamente, a imagem se desloca e capta uma máquina. Não, não exatamente uma máquina, embora pareça feita de metal. É uma forma alongada e angulosa, uma espécie de carapaça. Por alguns instantes, a imobilidade dessa forma lhe dá a impressão de que se trata de um objeto.

E então a criatura se vira de frente para você.

É um ser assombroso. Meio insetóide, meio humanóide, mede pelo menos dois metros e vinte de altura, e isso curvada. A boca, que num primeiro instante parece pequena, começa a se abrir, liberando uma baba de alto teor de viscosidade. Os maxilares se abrem de forma impressionante, e de dentro o que se estende não é uma língua, mas outro par de mandíbulas. A baba viscosa dessa boca menor ferve. É ácida.

A máquina dá um salto na direção da sonda. E fica tudo escuro.

Você fica imóvel durante algum tempo. Não há como saber quanto tempo.

— Esses... aliens... — você acaba usando o termo genérico; não encontra palavra que os defina — são máquinas de matar.

— Correto. — diz a entidade — Porém, são máquinas orgânicas. Não possuem mente de colméia, mas têm fortes vínculos psicossexuais com as ninhadas dentro das quais nascem e são gestados. Por todos os dados que conseguimos coletar, esses aliens agem em duas frentes: num primeiro momento, ainda em estado larval, rompem a casca do ovo que os contém e se agarram a orifícios em hospedeiros, a fim de concluir sua gestação dentro deles, visando a própria sobrevivência. Num segundo momento, a criatura já adulta abre seu caminho destruindo as vísceras do hospedeiro e procura o extermínio de qualquer outra criatura no seu caminho.

Então você entende.

— E nós estamos no caminho deles. — você diz.

— Calculamos que o próximo contato com essa espécie acontecerá nos próximos seis meses. Por isso provocamos toda essa situação.

Mas você continua sem entender (que falta sua superinteligência faz!).

— E qual é o meu papel nisso? Se eu não tenho poderes, se eu sou exatamente igual a todos os outros seres humanos — você percebe o quanto é difícil aceitar essa idéia — por que é que vocês criaram a ilusão de que eu era diferente?

— Porque você é diferente, Clark. — diz a voz. Mas, desta vez, às suas costas.

A voz também é metálica, mas tem um fundo humano inconfundível. Antes mesmo de se virar, você sabe de quem se trata.

O ser à sua frente também parece um robô, mas você já conhece a armadura característica. De um outro tempo. De uma outra vida.

— Brainiac. — você pronuncia, sem conseguir se acostumar à voz metálica que sai de algum lugar, agora você percebe, na altura de onde seria seu diafragma se você ainda tivesse um corpo.

— Você é toda a razão por trás deste projeto, Clark. — diz a voz metálica com uma estranha modulação humanóide.

Superman/Matrix: As Idades do HomemOnde histórias criam vida. Descubra agora