Depois do terceiro ano do ensino fundamental as coisas começaram a tomar um novo rumo na minha vida. O bonitão aqui estava com 10 anos de idade e não fazia ideia das coisas que aconteceriam nesta nova fase, mas era hora de descobrir.
Em 2003 uma decisão importante foi tomada; meu pai vendeu nossa casa por um preço bem baixo; mas tão baixo que naquele tempo daria até pra trocar por uma moto usada, se ele preferisse. Nos mudamos para uma casa que ficava no mesmo quintal da minha avó; que ficava do outro lado da cidade. Não entendi o motivo da mudança; talvez a coroa estivesse carente da presença dos filhos, mas preferi não palpitar e confesso que fiquei bastante feliz com a notícia de que eu teria alguém pra me ajudar a cuidar do meu pai.
Quando deixamos a casa eu perdi metade das coisas que me transformaram. Os bonecos se perderam ou ficaram esquecidos na caixa de brinquedos; inclusive o Robin, que talvez tivera ido parar no lixo. O pedaço de madeira que encontrei na trilha eu também nunca tentei retirar do esconderijo onde guardei durante anos. Perdi de vista bastante coisas que haviam na casa; como o binóculo, as cortinas que separavam a sala da cozinha e o contato com os vizinhos, mas apenas uma coisa me fez falta de verdade; a presença de Kelly.
A nossa nova casa era bem menor que a anterior onde eu passei a primeira fase da vida, mas logo ao lado morava minha vó; dona Rita, mulher que não gostava quando dois primos de sexos diferentes dormiam na mesma cama. Dona Rita também não gostava de almoço atrasado, mas ela sempre almoçava depois da hora, pois todos os dias deixava o feijão queimar. Ela gostava de ter sempre um pacote de biscoito disponível no armário, mas nunca comia. Dona Rita não gostava de admitir, mas todos da família sabiam que eu era o neto favorito dela; os biscoitos eram pra mim. Dona Rita também me viciou em café de forma indireta, pois seu pretinho era tão gostoso que eu não resistia em tomar mais de uma xícara que acompanhava o delicioso cuscuz com charque, comida típica do nordeste Brasileiro, onde ela cresceu.
Ela era casada com um escrivão da Polícia chamado Euclides; que não era nem um pouco amigável e tinha um bigode asqueroso que se movia sozinho. Com certeza ele não gostava de mim nem dos meus primos, mas Euclides gostava de pegar objetos jogados no quintal e ironicamente dizer que serviam pra uma boa sopa no jantar. Ele não gostava de me ver com pulseiras amarradas no tornozelo ou tatuagem de caneta. Ele gostava de sentar na mesa e saborear sua coalhada diária que dona Rita fazia questão de preparar pela manhã. Euclides não gostava de ficar parado; então num belo dia enquanto tentava subir numa cadeira pra trocar uma lâmpada, se desequilibrou, caiu, bateu com a cabeça e morreu. Eu não sei das coisas que ele gosta agora, mas sei que apesar de odiar o resto da família, ele gostava de dona Rita.
Como ele tinha duas famílias; passava alguns dias da semana na casa de outra mulher e minha avó ficava enfim, livre pra receber visitas das minhas tias. Desde pequeno eu desenvolvi uma habilidade conhecida como "cara de pau"; sendo assim, sempre que meu pai falhava nas tentativas de me bater eu corria pra casa dela e lá permanecia de forma com que Euclides não percebesse minha presença. A casa ao lado era como um abrigo que eu fui descobrindo aos poucos.
Com o passar dos anos eu comecei a sonhar com Kelly; eram sonhos frequentes, bem frequentes. Sonhava com ela de várias maneiras que alternavam com a medida em que eu a imaginava de uma forma diferente. Aos poucos eu ficava sem notícias dela e enquanto isso acontecia, apesar de nunca esquecer, a nossa história da infância morria lentamente. Certa noite sonhei que a visitava numa rua de ladeira bem inclinada e a aguardava em frente a sua casa durante algum tempo até que ela aparecia numa cadeira de rodas. Foi terrível imaginar aquela situação, mas eu comecei a perceber que minha cabeça começava a imaginar várias e várias formas de como ela estaria agora.
Os anos se passaram amargamente até 2010 e eu não deixei de sonhar com ela; apesar de acreditar que todas essas imagens eram apenas fruto da minha imaginação. Eu já não era mais capaz de entender se tudo aquilo foi real ou se eu teria visto em algum filme quando era criança; então passei a escrever esta história nos meus pensamentos e insisti em reproduzi-la por todos esses anos. Era como um livro imaginário onde eu escrevia as páginas e depois guardava-o numa gaveta empoeirada. Eu estava cheio de ideias sobre Kelly, mas sem leitores o meu livro imaginário nunca foi pro papel; muito menos saiu dele.
Menino jovem, aparentemente vivendo uma vida normal e sem contato íntimo com nenhuma garota, eis que surge o Ensino Médio, onde eu fiz questão de ir estudar numa escola de ensino integral depois que um amigo me contou sobre os deliciosos sonhos que eles serviam na hora do lanche. Esses sonhos são doces de padaria dos quais eu adorava e queria poder comer todos os dias na escola. Parece um motivo fútil, mas eu fazia muitas loucuras por comida, acredite.
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O primeiro amor de um artista
Non-FictionUm fotógrafo explica como as lembranças de um amor de infância e os acontecimentos relacionados a isso puderam influenciar na sua vida, ensinando-lhe a fazer arte. Este livro é baseado numa história real da infância do autor, e relata cenas de bully...