Cheguei nesta terra há pouco mais de quatro meses. Enquanto aguardo a morte que se aproxima, recordo estes últimos meses, sentindo a aproximação do meu algoz.
O dia da nossa chegada foi ensolarado, quente. O barco chegou à praia de uma terra virgem, trazendo colonos do velho mundo, ansiosos por uma vida nova. Deixamos para trás muita miséria, desespero e morte, cada um de nós com um fardo de perdas e desilusões. E a esperança de recomeço.Minha história não era diferente da de tantas outras mulheres que, como eu, tiveram de aprender a conviver com a perda de seus filhos, levados tão cedo. Foram três os que deixei na minha terra, ceifados pela doença e pela fome.
Desembarcamos e fomos conduzidos para o local onde seríamos instalados em definitivo. Foram quatro dias de viagem em meio à selva, cobertos de suor e mosquitos. A ameaça de animais e de nativos selvagens pairava constantemente sobre as nossas cabeças.Chegamos finalmente à aldeia, mas a visão que nos aguardava aumentou ainda mais nossas apreensões: a aldeia estava deserta, como se abandonada às pressas. De repente um som agudo cortou o ar, causando um calafrio em todos os presentes. Foi então que percebi que o grito agudo era apenas o choro desesperado de uma criança que, ao nos ver chegar, correu em nossa direção. Como que por instinto, me abaixei e abri os braços esperando acolher aquele ser indefeso.
Imediatamente, ele veio até mim. Eu o acolhi com carinho, pensando no que poderia ter acontecido com seus pais. O menino não devia ter mais do que dois anos, mas o abandono o fazia parecer ainda menor e mais indefeso. Daquele momento em diante, resolvi que não mais me separaria dele e que o criaria como se fosse meu.
Os dias se passaram. A vida era dura, mas cada dia novo era, para mim, uma promessa de felicidade. Minha vida foi invadida por um raio de luz, trazido por aquele pequeno ser que passei a chamar de filho. Assim como ele, eu havia perdido todos os que um dia amei: pais, irmãos, filhos, até mesmo o homem a quem fui dada em casamento. Sozinha no mundo, encontrei naquele menino o consolo para seguir vivendo. Mais do que isso, encontrei a razão para viver, pedindo a Deus que não o levasse também.
Certo dia, tudo começou. A princípio pareceu um acidente, comum em uma terra tão selvagem; um dos homens que havia deixado a aldeia em busca de alguma caça não retornou. Sua esposa esperou, angustiada, por dois dias, até que o grupo de buscas informou ter encontrado o corpo dele, dilacerado, no meio da mata. Todos acreditaram no ataque de algum animal selvagem que o surpreendera sozinho e isolado do grupo.
Após o funeral, a vida retomou seu curso. Os dias pareciam iguais, repletos de trabalho. E então aconteceu de novo. Desta vez uma mulher, encontrada morta não muito longe da aldeia, próximo ao manancial que abastecia de água a comunidade. Talvez a fome estivesse trazendo as feras para mais perto, se arriscando mais do que de costume. As mulheres passaram a seguir em duplas para buscar água, temendo a aproximação do perigo.
Mesmo assim, os ataques continuaram. A fera assassina que rondava a aldeia parecia cada dia mais audaz, atacando pessoas durante o dia e à noite, em suas camas. O medo se tornou uma constante e as histórias começaram a circular. Falavam de nativos canibais, de feras monstruosas, de mitos locais. Um deles, em particular, relatava a existência de uma fera mitológica, um homem-jaguar, na crença dos nativos. De tempos em tempos um homem, de alguma forma, enfeitiçado, se transformava em jaguar e espalhava morte ao seu redor.
Fazia sentido; as mortes eram cada vez mais frequentes, dentro da aldeia, dentro das cabanas. Os corpos apareciam dilacerados, como que atacados por ferozes mandíbulas. Quem, ou o quê, poderia ser responsável pelas mortes? E se não fosse uma fera ou um nativo, mas um de nós? Todos passaram a ser suspeitos. Ouvimos falar de bruxas e seus pactos demoníacos durante nossas vidas. As mulheres também passaram a ser alvo de suspeitas. Olhavam-nos com desconfiança, não sabendo mais em quem confiar.
As mortes continuaram e corpos eram sepultados todos os dias. Nossa aldeia mais se assemelhava a um cemitério. As poucas pessoas sobreviventes agiam como sonâmbulos, temendo e esperando seu fim iminente. E, a cada dia que passava, eu me tornava o alvo preferido das suspeitas. Como uma mulher sozinha poderia sobreviver tanto tempo? Como meu filho não havia sido atacado, enquanto tantas crianças foram mortas em seus leitos? No início, as pessoas começaram a me evitar, em seguida, vieram os insultos e as agressões. Apesar do isolamento, a vida transcorria. Enquanto estivéssemos vivos, meu bebê e eu, tudo estaria bem. Por alguma razão, o menino vivia feliz, o medo parecia não atingi-lo. Suas bochechas rosadas e o sorriso encantador iluminavam meus dias, afastando o medo e a solidão.
As semanas transformaram-se em meses e a aldeia tornava-se dia a dia mais deserta. A fome começou a rondar, as pessoas não mais caçavam nas matas vizinhas, as pequenas hortas foram abandonadas. Os ataques persistiam, os poucos sobreviventes sendo abatidos como moscas. Mas, incrivelmente, a minha cabana parecia a salvo, como se existisse algum tipo de amuleto a protegê-la e a seus habitantes. Considerei a possibilidade de algo sobrenatural estar protegendo o meu bebê. Afinal, ele não havia sobrevivido aos primeiros ataques e ao que quer que tenha dizimado a população antes da nossa chegada? Quem tinham sido seus pais? De que forma tinham conseguido protegê-lo da ameaça assassina? Na verdade, não me importava muito com as respostas; minha única preocupação era sua sobrevivência. Quer fosse um ato divino ou demoníaco, pouco me importava. Desde que sobrevivêssemos tudo estaria bem; de alguma forma conseguiríamos seguir adiante e continuar nossas vidas.
As mortes prosseguiram até que sobramos só nós dois. Fiz os preparativos para nossa partida no dia seguinte, pensando em como sobreviveríamos a uma viagem mata adentro, em busca de um novo local para viver. Arrumei nossos poucos pertences em uma trouxa e coloquei o bebê para dormir pela última vez na pobre cabana que tinha nos servido de lar durante os últimos meses. A noite estava mais escura do que o normal, sem luar ou estrelas. Depois que o bebê adormeceu, me encolhi no meu catre e esperei o sono chegar. E ele chegou, povoado de pesadelos, onde eu me sentia sempre perseguida por algo que não conseguia ver. Ouvia os gritos de terror, outros corpos caindo ao meu redor. Eu corria e corria, fugindo de algo que não conseguia ver, sentindo sua aproximação a cada passo. Enfim, quando senti que ia ser alcançada, consegui olhar para trás e ver meu perseguidor. A dor suplantou o medo e me deixei capturar, suas presas se enterrando em meu pescoço. Acordei ensopada de suor, ouvindo o ressonar tranquilo do meu bebê a dormir. Não consegui mais pegar no sono, a revelação do que nos ameaçava clara como água em minha mente.
O dia chegou, escuro e garoento. Tirei o bebê da cama para que brincasse um pouco antes da viagem. Ouvi quando seus passos o levaram para fora da cabana, seu riso alegre enchendo o ar. A certeza do que aconteceria encheu meu peito de angústia. Agora sei que não posso mais escapar. Finalmente minha hora chegou. Meu algoz logo sentirá fome de novo e sou a última presa neste local desolado. Ouço leves passos se aproximando, os gritinhos de alegria ecoando pelo interior modesto da cabana. Outro som se segue, quase um rosnado. Meu filho está chegando, e está com fome.
Apesar do medo, espero, resignada, pois nada mais me resta fazer a não ser entregar meu último suspiro como oferenda a esse pequeno anjo, que por pouco tempo pude chamar de filho.
Luciana Apolloni Santana
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Marcas Na Parede
HorrorContos sobrenaturais de suspense e de terror. Este livro não é de minha autoria, vim compartilhar esses contos que gosto com vocês, espero que gostem também.