Uma Vida Em Dez Segundos

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(Às vezes, a mente aplica truques em nossa percepção e nem sempre nos mostra o que devemos enxergar

Joseph era um típico cidadão nova-iorquino. Sua rotina diária sempre o tirava da cama logo cedo, obrigava-o a se arrumar, depois seguir para o trabalho e passar a manhã e tarde na monotonia de seu ofício em frente a um computador, fazendo planilhas e mais planilhas. Ao final de seu expediente, ia para casa e, após um jantar esquentado ao forno micro-ondas, sentava-se em frente à TV e passava de canal a canal, à espera do dia seguinte.

Amigos nunca existiram na vida de Joseph e ele não se lembrava de quando fora a última vez que saíra com alguém. Desta forma, nada importante ou mais emocionante jamais aconteceu em sua vida. Contudo, um fato da história recente sempre o perturbou e todo ano, em 11 de setembro, uma estranha inquietação o afetava. 

Naquela data, o grande atentado terrorista que derrubara as Torres Gêmeas voltava a ser assunto em todos os meios de comunicação. Documentários após documentários eram mostrados, recontando os acontecimentos daquele dia para não deixar ninguém esquecê-los. Era uma programação repetida anualmente. Porém, uma força maior o impelia a não perder nenhum dos programas, mesmo que já tivesse visto antes. Naquele ano, um evento especial estava programado e Joseph não via a hora de assistir às imagens inéditas e ouvir novas histórias de pessoas que sobreviveram ao caos. Durante o dia, no escritório, as horas pareciam não passar. A ansiedade aumentava e ele não entendia porque sentia tudo isso, mas seguia determinado a estar em casa no horário certo para assistir ao programa mais esperado do ano. Era como se alguma coisa de muito importante fosse acontecer com ele.

Finalmente em casa, Joseph se sentou diante da TV e aguardou pacientemente o começo da programação. A expectativa era tanta que não se importou em jantar, trocar de roupa ou se fazer confortável em sua própria sala; apenas ficou lá, sentado, solitário, de olhos grudados em seu velho televisor. 

O tão esperado programa começou exibindo relatos após relatos, com cenas inéditas e aterradoras de sobreviventes que estiveram próximos do inferno de fogo e concreto em que aquele dia se transformou. De tantas que ouviu, uma história chamou sua atenção de forma especial e não saía de sua cabeça. Tratava-se da história de um homem que estava na rua, próximo à primeira torre, e que viu o primeiro avião se chocar contra ela. Este homem, cujo nome Joseph não se lembrava, acabou ajudando a resgatar várias vítimas e, ao final do dia, pensando ter cumprido sua missão, descobriu que sua irmã e sobrinha estavam dentro do avião que vira explodir. 

Quando Joseph desligou a TV, faltava um minuto para a meia-noite. Suas mãos tremiam e ele sentiu um calor exagerado para aquela época do ano. Não podia ir para cama sem tomar um banho; então, dirigiu-se ao banheiro, ligou o chuveiro e entrou debaixo d'água. Neste momento, escutou um barulho vindo da sala. Sua TV tinha ligado sozinha...

Joseph não achou nisso nada de estranho. Foi até a sala e desligou o aparelho. Ao se dirigir novamente ao banheiro, viu a porta se fechar sozinha, com uma forte batida, e ao mesmo tempo ouviu um choro de criança. Aquilo começou a incomodar o homem que, muito lentamente, abriu a porta do banheiro. Não encontrou nada lá dentro. Cansado, terminou o banho. Depois, enxugou-se, vestiu o pijama e saiu em direção ao quarto. Na cama, não conseguiu pegar no sono. As imagens do programa passavam em sua cabeça uma após a outra. Ele se debateu no colchão e suava com aquele calor estranho que não o deixava sossegado. Para piorar as coisas, tinha a estranha sensação de que havia mais pessoas no quarto, com ele. Mas isto era ridículo, pois estava sozinho. 

Com sede, foi à cozinha. Pegou um copo e o encheu com a água tirada da geladeira. Ao sentir o gosto do líquido, estremeceu e o cuspiu longe. Tinha um gosto horrível... Parecia querosene! Uma tristeza imensa o invadiu, então. Ao olhar para o copo ainda em suas mãos, enxergou sangue no lugar da água. Desesperado, ele arremessou o copo contra a parede. O sangue que escorreu pareceu formar o contorno de um rosto. 

— Venha conosco... — sussurrou uma voz fria e aterradora, no fundo da mente de Joseph. — Não nos deixe sozinhos, por favor...

Não é possível, só posso estar delirando, deve ser o calor, pensou Joseph. Bastante nervoso, ele se dirigiu ao banheiro. Abriu a porta de espelho do armário, pegou um comprimido para dormir e o engoliu sem água mesmo. Ao fechá-la, olhou seu reflexo no espelho.

No mesmo segundo, uma mão de pele queimada e com muito sangue agarrou seu ombro, puxando-o para trás. Ele tentou gritar, mas nenhum som saiu de sua boca. Com força, Joseph conseguiu se libertar e correu para seu quarto sem olhar para trás. Fechou a porta. Isto não pode estar acontecendo, só pode ser um sonho, disse a si mesmo.

Olhou para o relógio, que ainda marcava um minuto para a meia-noite. Quando tudo pareceu se acalmar, o homem teve certeza de que sofrera alguma alucinação. Outra vez deitou-se na cama. Respirou fundo e apagou a luz. Silêncio. Sim, fora uma alucinação e agora tudo estava voltando ao normal.  

Foi quando escutou uma batida na porta. Silêncio. Mais uma batida e mais uma e outra até que uma sucessão delas produziu um barulho ensurdecedor. 

— Meu Deus, o que está acontecendo? Socorro! — gritou Joseph, mas não havia ninguém para ouvi-lo. 

Pelas frestas da porta, uma luz intensa invadia o quarto. Mesmo aterrorizado, o homem sabia que precisava-la abri-la. Ele se levantou, e, a passos lentos, seguiu até ela. Tocou a maçaneta, que estava tão quente que queimou sua pele. Sem se importar com a dor, ele a girou e abriu a porta.

Por segundos, a luz o cegou. Quando voltou a enxergar, descobriu que não estava mais em seu apartamento. Estava sentado e um cinto de segurança o amarrava na altura da cintura... Tudo, no mesmo instante começou a fazer sentindo... 

— Nós vamos morrer, Joseph, isto não pode estar acontecendo conosco... — gemia uma mulher a seu lado, aos prantos. Era sua irmã, Mary. E, em seus braços, estava a filha, Sophie.

— Obrigado por ter voltado, titio — disse a menina, com um sorriso triste.

Não havia mais tempo. Ao seu redor, pessoas gritavam, desesperadas. Outras tinham desmaiado. Pela janela do avião, Joseph viu aquele prédio enorme, em alta velocidade, ficar cada vez mais próximo. A primeira das Torres Gêmeas. O choque seria inevitável. 

— Meu Deus, eu estava aqui o tempo todo... — murmurou antes de sentir seu corpo derreter.

(Aceitar a realidade é muito difícil. Voltar para ela, então, é um terror)

                      
                           Arnoldo Mendes

Marcas Na ParedeOnde histórias criam vida. Descubra agora