Dificilmente ela voltava para casa com as mãos abanando.
Os pais sempre a elogiavam por ser tão eficaz em seu trabalho. Lugares públicos era sua especialidade. Após um longo dia de trabalho e uma refeição farta, ela normalmente reservava uma hora para rever seu desempenho, a fim de melhorá-lo. Estava a 77 dias sem perder nenhum cliente, este era seu recorde atual. Sua técnica era praticamente perfeita.Um sorriso triunfal apareceu em seu rosto ao pensar no cliente daquele dia. Ela quase o perdera. Ultimamente as pessoas pareciam menos dispostas, mais egoístas. Seu trabalho tornava-se cada vez mais difícil... E mais desafiador. Ela adorava uma boa dose de adrenalina e, por isso, escolhia os pretendentes a dedo. Todos eles tinham que ser bem instruídos, desconfiados e ricos. Não bastava um ou outro. Se necessário, ela passaria o dia inteiro procurando pela pessoa certa...
Enquanto lambia os dedos, limpando-os dos últimos resquícios do jantar, Marie observava sua família degustando a refeição que preparara para eles. A TV, ligada no noticiário, balbuciava as manchetes do dia, enfatizando a violência e a morte. Ao ouvir a repórter anunciar o sequestro de um dos diretores da Petrobrás, sua atenção se virou para a grande tela de LCD na parede.
A foto de um senhor de aproximadamente cinquenta anos apareceu, com um sorriso gentil e seu terno de dez mil reais. Em sua mente, Marie reprisava a cena de encontro com o cliente, do sorriso que a cativara, que a fizera escolhê-lo. Não fora somente o sorriso, é claro, fora também o status e os dois seguranças que andavam logo atrás.
Realmente, ele fora o mais difícil de toda a sua longa vida.
Mesmo durante os primeiros dias de trabalho, ela não se sentira tão desafiada. Seu talento natural fizera com que o trabalho se tornasse fácil logo no primeiro dia. Claro que a aparência também ajudava...
— Até o momento, a família não foi contatada com um pedido de resgate... — dizia a repórter.
A irmã de Marie soltou uma risada maldosa, mas esta a ignorou. Sabia que a invejosa arrumaria um jeito de lhe estragar o humor, apesar de sua total dedicação à família.
— Olhe só, Marie, agora você finalmente está na TV, acusada de um sequestro — disse a irmã, limpando o rosto lambuzado com o guardanapo.
— Eu não o sequestrei — Marie respondeu secamente, sem direcionar o olhar para a ingrata.
Não era uma sequestradora por dois motivos: primeiro, a maior parte dos sequestradores eram motivados pelo dinheiro que suas vítimas lhe proporcionariam e, segundo, um sequestro bem sucedido para ambas as partes incluía o recebimento deste dinheiro e o retorno da vítima. E ela não tinha a intenção de retorná-la.
Apesar de tentar não ser afetada pelos comentários mal-amados, Marie sabia que a irmã tinha razão em um determinado ponto. Tinha ido longe demais. A família do diretor possuía dinheiro suficiente para mobilizar toda a força policial para procurá-lo.
Com uma careta infantil, jogou seus longos cabelos dourados longe do ombro direito, fazendo-os chicotear o ar de forma ríspida.
Até que aquela história fosse esquecida, teria de ser mais cuidadosa e menos... seletiva. Tal ideia, no entanto, embrulhava-lhe o estômago. Um pavor subiu através de suas entranhas, corroendo-lhe o corpo como um forte ácido. Lembranças de seu passado faziam com que ela temesse a possibilidade de seu retorno. Havia se adaptado à qualidade de sua vida atual.
Pensando em como manter tal qualidade sem atrair atenção demais, decidiu se retirar e se preparar para o dia seguinte. Apesar do olhar questionador dos pais, ela os ignorou, partindo para o seu quarto com passos determinados. A mãe, com certeza, reprimiria a outra filha pelo comentário indevido, afinal, Marie era a favorita da casa. A infeliz merecia tal tratamento por sua inveja e inutilidade.
Logo pela manhã, Marie finalizou o caprichado banho com que iniciava seu ritual matutino. Sentando-se em frente ao espelho, pegou uma escova e começou a pentear os cabelos. Finalizou o demorado processo com um grande laço vermelho, com que prendeu os fios em um rabo-de-cavalo encaracolado. Olhando para o closet, Marie analisou suas escolhas, pensando na roupa ideal para atrair o próximo pretendente. Entre os vestidos, optou por um branco com detalhes vermelhos, que combinaria perfeitamente com o laço. A roupa era bordada e tinha um babado vermelho escuro na saia de tule e uma faixa de cetim, no mesmo tom, ao redor da cintura.
Assim que terminou de se arrumar, ela se olhou no espelho e sorriu, satisfeita. Suas covinhas, sempre presentes quando sorria, tornavam seu rosto ainda mais angelical. Ninguém ignoraria uma garotinha de oito anos em trajes tão delicados e elegantes como aquele. Pronta, decidiu ir ao trabalho.
Chegando ao calçadão da Praia de Copacabana, logo em frente ao Copacabana Palace, Marie observou a redondeza, preparando-se para a encenação. Ao ver um senhor grande e bem vestido dirigindo-se ao hotel, ela sorriu para si mesma, sabendo que encontrara sua vítima. Ele não parecia ser ninguém importante demais para chegar aos noticiários, mas com certeza serviria a seu propósito. O homem olhava seu relógio constantemente enquanto cruzava o calçadão, desculpando-se pelos esbarrões causados por sua pressa. Marie, rápida, se posicionou entre ele e seu destino, esperando que a notasse. Quando ele estava a menos de cem metros de distância, começou a chorar. Lágrimas doídas, sentidas, mostrando seu desespero. Enquanto escondia os olhos, soluçando, uma voz masculina perguntou:
— O que está acontecendo, menina? Você está perdida?
Marie fez que sim com a cabeça, soluçando ainda mais alto. Uma grande e áspera mão guiou as suas para longe de seu rosto, fazendo com que ela olhasse para ele. Os olhos infantis estavam levemente inchados e revelaram um pedido silencioso de socorro. Comovido, o homem lhe disse:
— Não se preocupe, iremos encontrar sua família.
A pequena ordinária assentiu, sabendo que, de agora em diante, tudo seria fácil...
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Com a respiração ofegante, Marie adentrou sua casa. Os pais imediatamente apareceram na sala de estar, ansiosos. Cobrindo-a de beijos, como de costume, eles a acolheram enquanto a outra filha acompanhava a cena dos degraus que levavam para os aposentos do andar superior.
— Vejo que desta vez você foi mais cuidadosa... — disse ela, secamente.
Ignorando a irmã como de costume, Marie pediu, em um tom que não deixava brecha para uma resposta negativa:
— Será que dá para alguém me ajudar? Isto aqui está pesado!
No mesmo instante, os pais a livraram do embrulho plástico, carregando-o para a cozinha. A menina surgiu logo atrás, saltitando alegremente e cantarolando. Deixaram o embrulho em cima da mesa. Sorrindo, Marie pegou a faca de desossar e começou a abri-lo.
Os olhos do homem que a ajudara próximo ao hotel pareciam surpresos, apesar de não possuírem mais vida dentro deles. Seu pescoço estava em um ângulo descomunal, deixando clara sua causa mortis. Cobrindo-se com o avental de açougue feito sob medida, a menina começou a despedaçar o cadáver com a faca, como se fosse uma tarefa comum e entediante. Assim que os pedaços satisfizeram seu gosto, a menina chamou:
— O jantar está servido!
Larissa Caruso
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Marcas Na Parede
HorrorContos sobrenaturais de suspense e de terror. Este livro não é de minha autoria, vim compartilhar esses contos que gosto com vocês, espero que gostem também.