Estávamos no inverno e aquele banho gelado me rendeu uma dor de garganta horrível. Quase nem acordei quando meu despertador tocou.
Todos os dias eu acordo às 4h da manhã e limpo a casa inteira, em silêncio, e, antes de ir pra escola, deixo o café da manhã pronto em cima da mesa pro meu pai. E é sempre assim. Tudo igual.Estava com meus fones, andando apressada em direção à escola, quando senti uma mão em meu ombro e parei, assustada.
Brenda arfava como se tivesse corrido pra me alcançar e seu primo estava mais atrás, com as mãos nos bolsos.
Tiro os fones e caminhamos lado a lado.- Você anda bem rápido, não é? - ela diz ajustando um gorro em sua cabeça.
- Acho que estamos atrasados - eu digo - Pelo menos eu estava.
- Acho que você já se adiantou bastante. - Lionel diz e reparo em seu semblante sereno. Ele tem um jeito pacífico de alguém que já passou por muita coisa, como se escondesse um segredo terrível do qual ninguém poderia saber.
Eu também tenho um segredo.
Ao olhar pra Brenda percebo que talvez ela também esconda um segredo. Talvez todos sejam assim.
Você não é a única. Sorri diante deste pensamento.
Avistamos Nelly me esperando na frente do portão da escola, como sempre.
- Oi, Nell - a cumprimento e ela olha pra mim com estranheza.
- Tá tão frio assim? - ela aponta para nossas roupas.
Apesar de inverno, o clima estava até bom naquela manhã. Mas ao olhar para os outros dois percebo que ambos estão com o corpo praticamente todo coberto, assim como eu. Mas eu sei os meus motivos.
Tenho que manter meu segredo.
Mas o que aqueles dois escondiam?
- É tudo questão de estilo, Nelly! - Brenda diz e Lionel concorda tirando o capuz e deixando seu cabelo um pouco bagunçado.
Nelly começa a contar sobre o sacrifício que fizera pra acordar e eu me "desligo" um pouco. Entramos na escola e alguém tampa meus olhos por trás.
Passo minhas mãos nas mãos da pessoa e seus dedos calejados pelo violão o entregam.
- Oi, Gustavo.
- Uau, você me reconhece só pelo toque? - ele finge admiração - Você me ama mesmo, Samantha!
- Ahn, qualquer um que ouvir seus gritos másculos jogando Silent Hill vai se apaixonar - eu brinco, mas na minha cabeça um "e se" martelava.
Ah, Gus. Se você soubesse!
- Você jogou sujo, Samantha. - ele diz sério - Agora terei que te irritar a manhã inteira!
- Que medo. - Brenda diz e Nelly assusta Lionel, rindo feito louca.
É difícil imaginar como vai ser quando eu for embora, botar o plano de sumir pra sempre em prática. Dá vontade de gritar, pedir ajuda, contar tudo o que está na minha cabeça. Mas eu não posso.
O coordenador nos manda entrar nas salas e, depois de um "até mais", me dirijo para minha sala de aula.
Estávamos no último ano do ensino médio e pela primeira vez eu caí em uma sala diferente de Nelly e Gustavo.
Puro azar!
Sento no mesmo lugar de sempre e deixo um caderno aberto sobre a mesa, pronta pra copiar qualquer texto que passassem na lousa. Mas algo me chama atenção do lado de fora da sala, longe o suficiente pra me fazer ajeitar os óculos no rosto.
Era um homem pálido, quase branco, e de cabeça raspada, suas roupas eram totalmente pretas e ele olhava diretamente para mim. Como se não tivesse um monte de adolescentes agitados entrando na sala. Só ele e eu. De repente eu também não via mais ninguém. Éramos só ele e eu.O homem levantou sua mão, como num aceno e eu tive impressão de ver sangue escorrendo por seu pulso. Ele sorriu. E comecei a sentir uma dor muito forte na cabeça. Uma dor aguda.
Tiro os óculos e tento amenizar a dor com os braços em volta da minha cabeça, mas ela aumenta consideravelmente.
Ouço um grito. O meu grito. E vejo Lionel correr na minha direção antes de fechar os olhos.
Ele me abraça com força e a dor começa a diminuir. Sinto o calor de seu corpo. Abro os olhos e vejo um Gustavo assustado no mesmo lugar onde antes o homem estava. Posso ouvir o burburinho que se formou entre meus colegas de classe.
Desculpe, Gus. Eu tentei.
Começo a chorar descontroladamente. Pela dor e pelo susto, mas por todo o resto principalmente. Me agarro ao corpo magro de Lionel, percebendo o quanto um abraço me fazia falta.
Já faz tempo que não me permito ser uma pessoa carinhosa e contatos físicos assustam.Eu não podia deixar mais ninguém tocar em mim. Aquela dor me acompanhava há alguns dias durante crises, era insuportável.
- Eu sei - ele sussurra em meu ouvido e eu sinto que ele realmente sabe. E, de repente, aquelas duas palavrinhas me deram um conforto inimaginável.
Gustavo parece estar em choque, sem saber o que fazer e eu sinto vontade de bater nele só pra ele não querer ficar perto de mim.
Era um monstro, Gus!
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Quando os pardais se aquietam
Fantasy"- Tá legal, Sam. Você acaba de abandonar sua primeira vida - o homem dos pulsos cortados diz - e eu realmente sinto muito por isso." Quando sua realidade não faz mais sentido, Samantha se refugia na morte, já com a certeza de uma não-existência...