Meghan

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Sempre nos disseram que devíamos nos esconder. Não deixar que ninguém nos visse, ouvisse ou nos notasse.

Crescemos nas sombras, nos escondemos de todos, inclusive de nós mesmas. Não podíamos ter um nome oficial, não podíamos ter amigos, não podíamos respirar direito... ou isso, ou não sei o que o Domain seria capaz de fazer com a gente.

Teoricamente era como se nós não existíssemos, até porque nós não poderíamos existir se quiséssemos manter nossa liberdade, ou seja lá o que nós temos, é como se fosse só a ilusão de uma vida que nunca foi real.

Meus pais tentaram nos tornar normais, mas nosso normal estava apenas entre as paredes dessa casa. Na falta da escola nossa mãe nos deu aulas, na falta de outras interações nós sempre tivemos a família.

Isso sempre precisou bastar, porque ser um espaço inexistente no mundo pode ser algo ruim, mas com certeza ir para o Nihil seria bem pior.

As pessoas dizem coisas horríveis sobre lá, já ouvi coisas que eu preferia poder esquecer. Não sei se as informações são realmente reais, porém nem eu e nem ninguém estamos a fim de descobrir.

Eu tenho um motivo para me esconder do mundo. O Domain limita o número de pessoas que uma família pode ter. Dois filhos e nada mais. Por ironia do destino eu acabei sendo a quarta, e Angel a terceira. Dei esse nome pra ela porque ela realmente parece um anjo, tão linda que mataria qualquer garota da elite de inveja, e talvez por isso, apesar de todas as regras pra nos mantermos despercebidas.

Talvez tenha sido seu jeito angelical que acabou deixando nosso vizinho Ed apaixonado por ela. Ed está na mesma situação que a gente, é o terceiro filho da sua família. Como os pais dele sempre foram muito amigos da gente, ele e a Angel "cresceram" juntos, sempre foram inseparáveis desde que eu me lembro.

Nós não existimos para muitas pessoas, só as de confiança, e a família dele sempre foi confiável. Talvez a mentira tenha unido nossas famílias.

- Angel, saia da janela e venha dormir, já estou com sono! - Me sento no nosso colchão velho e esfrego os olhos.

- Como você imagina que seja o Nihil, Meghan? - Ela desvia os olhos da janela e olha atentamente pra mim.

Faço cara de desdém.

- Tanto faz, Angel! Por que quer saber?

Não é um assunto que seja do meu agrado, dentro da nossa casa nossos pais nunca nos incentivaram a pensar nisso.

- Sei lá, só fico imaginando, e se um dia formos pegas e...

- Hey Angel, não damos bandeira para que isso aconteça, lembra? Se continuarmos andando na linha não tem como o Domain nos pegar!

- Mas e se...

Nada de "e se". Eu me recuso.

-Venha dormir, anda! - Me jogo no colchão e cubro a cabeça com a coberta, assunto encerrado!

•••

- Angel?

Olho para o lado do colchão que compartilhamos, tateio e não a sinto. Me levanto, vou até a janela e ainda está de noite. Sinto um frio na espinha. Para onde ela foi?

Procuro pela casa mas, ela não está em lugar algum. Dentro de casa só há o silêncio do sono dos nossos pais e nossos irmãos, e agora o ruído quase imperceptível dos meus passos.

Quando você passa a vida se esgueirando você fica ótima nisso.

Pego meu casaco surrado e percebo que estou com medo do que estou prestes a fazer. Assim que abro a porta sinto o vento fresco no meu rosto. Fecho-a com cuidado atrás de mim e tento andar o mais discretamente possível.

Estou infringindo o toque de recolher, não é um costume meu, eu aprendi a ser cuidadosa, mas preciso achar a Angel, ela não pode ter ido muito longe, seja lá para fazer o que.

Ela não é a pessoa mais centrada do mundo, mas ela também não se arriscaria se não fosse importante.

Ando pelo o que parece ser 10 minutos, quando ouço um barulho vindo do beco. Corro pra me esconder atrás de uma lata de lixo próxima.

Prendo a respiração e espero. Nada acontece e ninguém sai de lá. Então ouço uma voz familiar. Angel.

- Nossas famílias vão aceitar se contarmos... - É o que escuto.

Me aproximo do beco para ouvir melhor.

- Não querem que a gente chame atenção, nosso namoro com certeza vai representar uma ameaça pra eles! - É a voz de Ed.

Suspiro num misto de alivio e revolta. Alivio por encontrá-la, revolta por eles serem inconsequentes.

Incrédula, entro no beco e interrompo a conversa sem pedir licença.

- Qual é o problema de vocês? Perderam o juízo? Uma DR depois do toque de recolher em um beco? É sério que...

-Parados aí.

A voz vem atrás de mim e meu sangue congela. Eu não preciso ser um gênio para saber quem diz isso, não a pessoa exata, mas sei o que ela é nesse sistema. Um soldado.

- Venham até aqui e apresentem seus pulsos.

Seus pulsos. Nenhum de nós possui uma identificação, não nascemos em um hospital, não tivemos nosso código injetado em nossa primeira semana. Nós nem existimos.

Fecho os olhos, respiro fundo e me viro lentamente para o soldado que agora fica a minha frente.

Angel e Ed se aproximam, todos nós sabemos que é o fim, não há para onde correr. Olho pra Angel e algo no olhar dela demonstra choque, medo, desespero e um pedido de desculpas.

Sinto uma lágrima descendo pela minha bochecha e apresento meu pulso. O guarda o segura, seu aparelho checa, uma, duas vezes. Então o de Angel. Não demora para que o guarda perceba o que está havendo ali, ele dá um sinal e então ouço um misto de gritos, luzes, confusão. Estou perdendo a consciência e tudo que vejo é Ed se camuflando como sempre fez e correndo pra escuridão.

Ele nos abandonou.

Minha visão está escurecendo. Por um instante penso nos meus pais, meus outros irmãos, eles nunca saberão o que houve quando não nos encontrarem na manhã seguinte. Estamos sendo arrancadas das únicas pessoas para quem sempre existimos.

Meus olhos queimam com uma dor e depois é como se todos meus sentidos se perdessem.

Se Angel desejava saber como era o Nihil, seu desejo estava prestes a ser concedido.

DelinquentesOnde histórias criam vida. Descubra agora