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Não havia tempo. Não havia tempo quando ela alcançou a casa correndo mais que os pés podiam acompanhar, escancarando a porta e então a fechando atrás de seu corpo assim que entrou, enquanto se agarrava ao vestido sujo, impedindo-o que arrastasse pelo chão. Tropeçou com a respiração ofegante pelo casebre antigo, a visão embaçada pelas lágrimas que vinham a cada segundo ainda mais intensas que sua capacidade para as impedir. O mundo parecia rodar, confundi-la, enquanto o seu tempo desaparecia entre seus dedos. Uma grande obra dos deuses para atrapalhá-la a todo custo.

Correu até a mesa de jantar rente à parede oposta à entrada e afastou tudo o que estava em cima dela com os antebraços, jogando ao chão, sem pensar no barulho do que quebrava ou não. Tirou das dobras do vestido o mapa velho que arranjara e o estendeu, o coração que ecoava forte em seus ouvidos gritando corra, corra, corra.

Os olhos subiram pelo território de Gamoust, Echo, reinos acima... para o Norte e além. Além do que qualquer um conhecia. Os dedos brincaram passando ali, sentindo a superfície áspera e prazerosa sob os dedos calejados.

Talvez um suspiro de alívio tenha sido soltado por ela ali; talvez fosse só impressão, mas sentiu o peito em paz por meio segundo, como se seu destino — o tão glorioso e sonhado — estivesse bem diante de si.

Mas então o grande aperto voltou ao ouvir os passos e o grito ameaçador quando a figura masculina abriu a porta com força brutal. Veena virou-se para trás quando o homem surgiu: o machado ainda preso atrás de seu joelho, manchado por sangue que ainda escorria, a barba ainda suja de quando ela o golpeara e atirara na lama. Aquele facão que segurava no punho cerrado... parecia que seu coração ia sair pela boca quando seu corpo começou a tremer — quando as mãos se agarraram à mesa pois chacoalhavam tanto que ela pensou que os ossos fossem partir.

Sem desviar os próprios olhos das íris negras daquele homem, ela agarrou com força o mapa atrás de si e as lágrimas quentes e familiares começaram a escorrer pelo rosto.

O homem ofegante abriu um sorriso doentio e por pouco ela não correu dali naquele exato momento. Aquele lugar era tão pequeno... e parecia diminuir cada segundo mais.

— Veena... Não vai conseguir fugir de mim dessa vez — a voz rouca e que protagonizara seus pesadelos por anos disse, por entre arfadas pesadas, dando dois passos curtos que pareceram estremecer todo o cômodo.

Ela desviou o olhar para a janela a alguns metros à esquerda, sufocando as palavras dentro de si.

Voldec seguiu o olhar da garota e gargalhou com desdém. Antes que ela pudesse tomar uma decisão, ele apoiou-se com esforço no armário de madeira velho ao seu lado, empurrando-o na direção da janela. A ruiva só entendeu o que ele queria quando ele caiu no chão, fechando a janela e a prendendo contra a parede, ainda desabando de forma que cobrisse parcialmente a passagem que havia para o cômodo ao lado. A luz sumiu do lugar, exceto por a que vinha por trás do homem que a fazia enxergar a poeira subindo e os olhos escuros que riam de sua cara patética.

— Você realmente pensa que vai fugir de mim? E para onde iria, Veena, antes que os guardas de Gamoust a capturassem?

— Me deixe em paz — a voz soou mais baixa que gostaria, embargada como deveria soar uma súplica, mas os olhos verdes esmeraldas brilhavam em fúria e ameaça. Talvez coragem, mas não imaginava que fosse digna de tal coisa. — Não atormentarei sua vida nunca mais.

Ele continuou rindo, olhando-a como se fosse a menina tola que chegara muitos anos antes, quase uma vida atrás.

— Isso não seria ter piedade demais de você? Afinal, que tipo de filha golpeia um pai e continua viva? E o que você acha que a Guarda dirá quando souberem da história? Uma assassina solta, fora de si...

— Não me chame assim — ela disse entredentes e o homem se livrou do sorriso do rosto.

O pai de Veena a encarou de cima abaixo, notando como o corpo já estava preparado para fugir por qualquer lugar, que ela já havia calculado tudo enquanto ele tagarelava: por onde passaria, o que faria, como o atrasaria se tudo desse muito errado. Exatamente assim, fugiria. Como uma covarde. Mas planejava aquilo há anos e não podia falhar ali.

— Você é uma vergonha para a sua mãe — o homem que Veena rezara por anos para nunca ter conhecido cuspiu as palavras e não viu quando a faca voou.

Aquela única faca que não caíra com o resto das coisas no chão quando ela abrira espaço na mesa; que ela recolhera junto com o mapa e Voldec nem percebera, cego pelo desejo de vê-la morta, a arrogância inquestionável. E Voldec não exibiu reação senão surpresa contida pelo orgulho ao senti-la atravessar sua pele, sua garganta, com um movimento apenas. Fazendo um riacho de sangue escorrer por seu pescoço vagarosamente. Ele passou as mãos pelo sangue, manchando os próprios dedos e os olhando com ira incomparável.

A respiração dela parou. Um golpe de sorte, uma chance.

Ela não sabia o que pensar quando ele caiu de joelhos, o machado enterrando ainda mais em sua carne enquanto tremia em tanta raiva quanto ela, o tom de ameaça mesmo quando o sangue lhe subiu até a boca:

— Eu vou matar você.

Ela não tinha dúvidas, mas o sangue continuava a lhe tingir a pele e o tempo dela havia chegado ao fim. Seus irmãos chegariam em pouco tempo e então não faria mais diferença se ela estivesse dentro ou fora do casebre: eles a caçariam e ela não queria nem sequer começar a imaginar o que viria depois.

Ela mal olhou ao redor antes de pular pelo armário caído e passar para a sala ao lado. Saltou sua janela estreita — a qual havia se esforçado para desemperrar por semanas incansáveis —, a abrindo o máximo que a ferrugem antiga permitia.

Ao menos, como ela calculara antes de pegar a faca, saltar o armário o atrasaria, principalmente com o machado que ela enfiara em sua perna. E ao menos a sorte estivera ao seu lado quando ele empurrou aquele armário. Aterrissou do lado de fora, quase caindo por conta da barra do vestido. Ultrapassou a cerca e saltou por onde estavam os porcos, tropeçando na lama enquanto corria mais e mais, para cada vez mais distante.

Viu o sol começar a ser pôr à Oeste, à sua esquerda, em meio aos tons avermelhados do céu: sim, estava na direção certa. Seguiria em frente, adentraria aquela floresta densa metros à sua frente e não pararia — e sobreviveria. E então ficaria em paz.

A última coisa que ouviu foi um rugido de ódio de seu nome que estremeceu as árvores, fez folhas chacoalharem e aves voarem da mata. Ela afundou o medo no fundo da alma e não olhou para trás.

Coroa de Eagenon ¤ A FeridaOnde histórias criam vida. Descubra agora