O céu começava a tomar um tom alaranjado, salpicado de nuvens branquinhas como algodão doce. Ralph descansava debaixo de uma árvore em glorioso estado de concentração quando pôde ver sua amiga passar ali por perto, quase que em transe e sem dar sinal algum de motivação. Assim que ela passou em sua frente, o jovem a chamou:
— Oi, Auria! Eu queria falar com você, mas aí encontrei essa sombrinha tão gostosa que acabei ficando para aproveitar o momento, quer se juntar a mim?
— Não.
— Tudo bem, então.
Auria continuou a caminhar sem rumo, mas em um dado ponto parou e olhou para trás. Ralph continuava debaixo da árvore com as mãos unidas, como se estivesse meditando ou apenas usufruindo do momento, alheio a tudo que acontecia ao seu redor. Ralph não tinha nada a ver com seus problemas e, mesmo assim, acabara descontando a raiva nele.
A garota sentou-se perto dele, abraçou seus próprios joelhos e cobriu o rosto.
— Eu sou uma pessoa terrível... — ela enfim lamentou em voz alta.
— Sabe, eu tinha um besouro de estimação em casa chamado Jujuba, só que ele morreu. Eu também devo ser uma pessoa terrível por tê-lo deixado morrer.
— Isso não tem nada a ver com ser uma pessoa ruim.
— Eu poderia ter soltado ele quando tive a chance... — Ralph voltou a balançar a cabeça com pesar. — Por ter deixado um ser vivo morrer sob meus cuidados, isso faz de mim um monstro?
— Você cuidou dele até o fim, não é culpa sua. Você... tentou.
Ralph deitou-se na grama e olhou para cima. Auria sentiu-se confortada por aquele ânimo tão natural, coçou a cabeça de forma encabulada num gesto raro de sua parte e falou:
— Como pode enxergar o mundo dessa maneira? Quero dizer, nunca está bravo com ninguém, nunca está triste por nenhuma decisão errada. Como você faz isso?
— É uma questão básica de escolher todos os dias, todos os instantes. Se eu ficar bravo, o que isso mudaria? Eu poderia deixar alguém magoado? Como posso fazer alguém feliz? Eu apenas escolho.
— Eu descontei minha raiva em você sem motivos — continuou Auria. — Quando alguém faz algo terrível, as pessoas costumam ficar bem irritadas.
— Não entendo por que as pessoas fariam coisas terríveis, mas você nunca praticaria alguma maldade de forma proposital, não é?
A moça respirou fundo e também deitou-se no chão.
— Foi mal pela maneira como eu falei com você agora há pouco.
— Sem problemas — disse Ralph, mudando de assunto em seguida. — O pôr do sol está bonito, não?
— Romântico demais para o meu gosto. — Auria deu uma risada de leve.
— Só estou aqui para armazenar energia para minha pele, preciso de forças para o anoitecer ou vou morrer de frio. É que nós, geckos, costumamos precisar de bastante calor... Nosso sangue é frio.
Auria fez uma careta ao terminar de ouvir aquela conversa sem sentido algum.
— Você é tão estranho — ela falou.
— Estou só brincando, sei que não sou um gecko. Pareço bobo, mas nem tanto. Só acho que os humanos deveriam sorrir mais.
Ela revirou os olhos.
— Por que se esforça tanto para ser legal comigo?
— Sei lá, por que não?
Os dois continuaram apreciando a vista do alto do penhasco enquanto o sol se punha do outro lado do horizonte, onde o mar parecia chegar ao seu fim e a Ilha dos Geckos se erguia, tão cheia de seus mistérios para os humanos que raramente faziam sua travessia.
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Matéria, Espada de Madeira
FantasíaMatéria - Espada de madeira parece ter uma trama clássica de fantasia com padrões de um herói, uma princesa e um vilão; só que o herói faz tudo errado, a princesa é uma guerreira e o vilão só é incompreendido. Ralph é um garoto diferente aos olhos d...