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Qualquer que seja a substância das almas, a minha e a dele são feitas da mesma coisa.

- O Morro dos Ventos Uivantes, Emily Brontë


O som da chuva é suave, o apartamento silencioso além do ruído de uma Londres em mais uma tarde chuvosa.

Os olhos de Harry seguem o movimento das gotas contra a janela a sua frente, apoiando em sua cadeira e o notebook aberto a sua frente, seus pensamentos dispersos enquanto documento continua em branco.

Com um suspiro e uma última tentativa, Harry senta-se ereto sobre sua cadeira e volta seus olhos para a tela, seus dedos hesitantes sobre as teclas. Um suspiro cai dos seus lábios ao que ele permanece na mesma posição, uma carranca tomando sua face ao que os minutos passam e nenhuma palavra é digitada, a página em branco como uma metáfora ao bloqueio criativo que, por mais que ele tentasse ignorar, está ali e insuperável.

Como o maior medo de todo autor ou artista, Harry estaria mentindo se dissesse que isso nunca lhe aconteceu antes. Mas, dessa vez, além da resistência, há a impertinência crítica em que nada é capaz de agradar.

Livros sempre tiveram um papel em sua vida. Encorajado desde cedo a tal, livros eram uma boa distração, até que aos treze ele leu pela primeira vez O Morro dos Ventos Uivantes e finalmente encontrou seu apreço na leitura, seu gosto por clássicos sendo fácil de definir quando ao longo dos anos seus favoritos se encaixavam nesse gênero.

De um modo ou de outro, ter como preferência grandes nomes da literatura e como grande base, é mais do que esperado que Harry fosse crítico em relação a sua escrita. De um garoto apaixonado por literatura e que escrevia para o jornal da faculdade, até um homem de vinte e cinco e dois livros publicados além de trabalhos avulsos do gênero, foi um longo caminho em que a persistência foi a chave. A gratificação de ter seu trabalho publicado e poder proporcionar para muitos o mesmo que ele sente ao ler um livro foi um resultado que em retrospectiva fez tudo valer a pena.

Ele não quer desistir. O medo de tudo acabar antes mesmo que ele tenha tido a chance de dar o seu melhor é mais presente do que Harry gostaria de admitir. Ele olha uma última vez para a página em branco e em um movimento súbito, fecha o notebook, mais que confirmado para ele que, apesar de tudo, a persistência em algo mais que irremediável é nada mais que ingênua tolice.

Ele se levanta e caminha por seu apartamento em um único objetivo. Quando as palavras apenas não querem cooperar com ele, como nesse momento, ele recorre as mesmas em busca de reconciliação.

Ele corre os dedos pelas lombadas dos livros, apenas uma das muitas prateleiras repletas em seu apartamento. Seus olhos seguem o movimento, parando por instantes em dúvida e por fim continuando, até que ele encontra a lombada escura e conhecida entre muitas.

Ele puxa seu exemplar de O Morro dos Ventos Uivantes, um pequeno sorriso se abrindo em seus lábios ao que ele corre os dedos sobre capa escura, rastreando com as pontas os detalhes dourados e familiares, os mesmo de mais de uma década atrás. Ele se acomoda no sofá e abre a primeira página, as linhas familiares e já gravada no fundo de sua memória, tendo relido o mesmo inúmeras vezes antes, aprendido que a leitura densa do mesmo deve ser calma e apreciada, mais uma vez encontrando seus personagens na mesma medida amados e odiados em mais uma tarde em Londres.

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Um Starbucks provavelmente não seria um local em que se escolheria para escrever. Mas do contrário do barulho e movimento ao redor sendo chaves para uma possível distração, é um dos locais favoritos de Harry para escrever, uma bebida quente e algo para comer apenas ao alcance enquanto ele ignora o mundo ao seu redor e se concentra em seu dever.

Clair de Lune • l.s.Onde histórias criam vida. Descubra agora