1 - Ela

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Eu estava pronta para pedir divórcio quando a humanidade acabou.

Sim, foi exatamente isso que você leu, se é que alguém lerá isso algum dia.

A humanidade acabou.

Acabou logo às vésperas do meu tão aguardado divórcio.

Ainda sem saber do acontecido, o despertador me acordou bem cedo. Era hora de me arrumar para mais um dia de trabalho, hora de repetir todo aquele ritual matinal de sempre. Odiava com todas as minhas forças ter que levantar cedo, odiava também o som daquele maldito despertador dos infernos. Quando ouvia aquele mesmo toque durante o dia, sentia calafrios na espinha.

Se ao menos soubesse que tudo tinha acabado, teria me dado ao luxo de acordar mais tarde.

Já de pé, tal qual uma zumbi, olhei de volta para a cama, pensando em seu calor e no aconchego de seus lençóis. Meu então quase ex-marido continuava lá, com a maior tranquilidade do mundo. Mal sabia eu como isso era verdade. Ele costumava acordar consideravelmente mais tarde e eu o invejava por isso.

Depois que terminei de me arrumar e finalmente pus os pés na rua, não havia ninguém lá.

Literalmente.

Apenas os carros abandonados, o vazio e o silêncio.

Silêncio absoluto, como se alguém tivesse apertado o botão mudo no controle remoto do planeta. Percebi, então, como o silêncio é uma coisa esquisita. O silêncio verdadeiro, absoluto, sepulcral. Mesmo representando uma ausência, ele ainda assim se faz presente de uma forma que você não consegue ignorá-lo. É como um peso sobre seu corpo, que te comprime. Que te oprime.

É terrivelmente perturbador.

Andei até a esquina, quase correndo, enquanto pegava o celular na bolsa e começava a discar para conhecidos. Minha mãe, meus amigos, quem fosse. Ninguém atendia. Tentei números aleatórios. Ainda ninguém. A única voz que pude ouvir naqueles momentos de angustia era a gravação automática da moça da caixa postal.

Voltei correndo para dentro de casa. No quarto, balancei meu marido para acordá-lo.

"Que foi, mulher?" Perguntou, completamente grogue de sono.

Ele tinha a mania de me chamar pela alcunha de "mulher". Não pelo nome ou um apelido carinhoso. Apenas "mulher".

"Todo mundo sumiu, homem!" Gritei.

Eu só me acostumei a chamá-lo de "homem" porque ele só conseguia me chamar de "mulher". Vá entender as lógicas por trás de um casamento de quatorze anos.

"Não fode", ele resmungou e se virou para o outro lado da cama. Colocou o travesseiro para cobrir a cara.

Peguei o controle e liguei a TV. Nenhuma programação passando. Na verdade, não sabia nem mesmo por quanto tempo continuaríamos a ter luz.

Soltei um grito agudo e joguei o controle na tela preta. Assumo que surtei um pouco diante de toda aquela situação. Meu grito pareceu escapulir pela janela e ecoar por toda cidade silenciosa. Já a TV ficou com a tela rachada.

"Porra!" Ele pulou da cama assustado. "Que porra é essa?"

"Todo. Mundo. Sumiu." Falei pausadamente, com os olhos arregalados. "Você me entendeu? TODO MUNDO SUMIU, PORRA! NÃO TEM NINGUÉM LÁ FORA!"

"Que tipo de droga você começou a usar agora?" Perguntou ele, alarmado com meu chilique aparentemente sem nexo. "Tá misturando tarja preta com bebida?"

"Antes fosse isso", falei. "Vai lá fora ver."

Desabei no chão, recostada na beirada da cama, em negação. Sem forças para reagir.

"Só vai", repeti.

Ele permaneceu no lugar, me observando. Talvez ponderasse se aquilo era algum tipo de pegadinha. Quando finalmente pareceu se convencer, saiu do quarto sem dizer nada. Na verdade, acho que o ouvi murmurar a palavra "maluca" antes de sair.

Depois de alguns minutos, voltou correndo, arfando, esbaforido.

"Não tem ninguém na rua, porra!" Falou. As palavras quase não saiam pela falta de fôlego. "Eu dei a volta no quarteirão, andei duas ruas até a pracinha, toquei algumas campainhas e nada. Não tem ninguém mesmo!"

"Não me diga", ri de forma sarcástica. O sarcasmo pode ser uma forma de desespero.

"O que você fez?" Ele perguntou em choque.

Eu me levantei, incrédula.

"Só você mesmo para querer colocar a culpa disso em mim!" Nesse instante, a ideia de divórcio, suprimida no meio de toda aquela confusão, voltou a minha mente com tudo. "Você sempre faz isso!" Acusei. "Falta luz e a culpa é minha! Jogam uma bomba na Síria e a culpa é minha! O mundo acaba e a culpa é minha!"

"Eu não entendo!" Ele exclamou exasperado. Seus olhos estavam esbugalhados e parecia suar frio. Andava de um lado para o outro do quarto, sem sentido, como se seu cérebro tivesse torrado.

"Novidade", inconscientemente fui na direção do chuveiro. Era uma de minhas estratégias para quando me sentia estressada. E eu estava estressada para caralho. Peço que perdoe o palavrão, mas não penso em outra maneira de conseguir expressar a intensidade do que sentia. Ele ficou lá parado, me observando, com aquela cara de imbecil que só ele conseguia ter.

A última cara de imbecil do planeta.


Não adiantaria me bombardear com perguntas e questionamentos, eu não faço ideia do que aconteceu. Não temos noção do quão dependente da mídia é o nosso entendimento de mundo até que a mídia acaba. Não tinha nenhuma reportagem de jornal para explicar o que acontecera. Ninguém mais acessava a internet para especular e conjecturar as coisas, mesmo que fossem apenas mentiras ou loucuras conspiratórias. Não sei o que o futuro nos reserva, mas, nesse momento, não tenho resposta alguma.

No final das contas, não pedi o divórcio. Nem mesmo me distanciei dele. Talvez essa seja uma punição divina e isso aqui seja meu purgatório eterno. Estaria condenada a viver com aquele traste pelo resto da existência. Provavelmente você não se lembrará daquela frase que dizia "não fico com fulano nem que ele seja a última pessoa do mundo".

Tenho certeza de que quem falava uma coisa dessas nunca ficou sozinho de verdade.

Ainda Estamos AquiOnde histórias criam vida. Descubra agora