Não acredito. Estou ofegante até agora. Meu coração está a mil. Acho que vou explodir.
Você não vai acreditar no que aconteceu.
Hoje de manhã, saí para verificar nas lojas da região quais comidas não haviam passado de seus prazos de validade. Essencialmente isso se resumia a grãos e afins naquela altura. Enquanto considerava qual seria o melhor lugar para começarmos uma horta nossa, eu o vi. Tenho certeza de que vi. Sei que meu marido não acredita em mim, mas tenho certeza do que vi.
No final da rua, em cima do teto de um carro torto por conta de pneus arriados, eu vi um gato.
Era uma criatura magnífica. Quase havia me esquecido de como eles podiam ser belos.
Simplesmente encontrava-se sentado ali, lambendo seus pelos de forma despreocupada.
Era grande e negro. Tinha imensos olhos amarelos, como faróis em uma estrada noturna.
Eu congelei, sem saber como agir.
De maneira alguma queria arriscar afugentá-lo. Queria permanecer em sua companhia, observando-o, admirando-o. Cada pequeno detalhe de sua natureza me fascinava. Cada movimento que fazia. A maneira como respirava. Suas idiossincrasias, como o pequeno mover de suas orelhas quando ele olhava ao redor. E, principalmente, o fato de que aquela criatura parecia indiferente a toda aquela loucura que nos rodeava.
Mas, ao mesmo tempo, queria arranjar um modo de levá-lo para morar conosco. Ter mais vida em casa. Ter alguma novidade excitante.
Permaneci no lugar, indecisa. Ele parecia confortável onde estava, o sol banhando seu corpo com o calor matinal. O gato se acomodou ainda mais e fechou os olhos. Pareceu cochilar.
Fu consumida pelo impulso. Decidi que me aproximaria, que tentaria realizar toda aquela empreitada furtivamente.
Mas a quem eu queria enganar?
Nunca fui boa nesse tipo de coisa. Meu controle corporal é uma piada.
Esbarrei numa garrafa de vidro esquecida, uma minúscula parcela da imensidade de lixo que foi deixada para trás pela humanidade.
A garrafa caiu, espatifou-se. O som que emitiu mais parecia com o estrondo de uma explosão nuclear. O gato preto acordou num salto, pelo arrepiado, rabo em riste. Esquadrinhou as redondezas com agilidade inigualável. Seus imensos olhos amarelos encontraram os meus. Emitiu um miado acuado, arranhado. E se foi.
Foi-se, como se nunca tivesse existido. Pulou para fora do carro e imediatamente o perdi de vista.
Em desespero, corri na direção do carro torto, mas era um esforço inútil. Corri aleatoriamente, procurando por um sinal do bicho. Corri ainda mais. Tudo revelou-se um esforço vão.
Senti a vontade momentânea de chorar, de gritar e espernear. No entanto, não fiz nada disso. Ainda podíamos encontrá-lo. Ele estava em algum lugar por aí, era apenas uma questão de encontrá-lo.
Amanhã acordarei bem cedo para continuar procurando. Nós vamos achá-lo.
Engraçado, essa deve ser a primeira vez que acordarei cedo no pós-mundo.
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Ainda Estamos Aqui
Short StoryEssa é a história do último casal do planeta contada a partir de seus diários pessoais.