2 - Ele

26 2 0
                                    

Tenho certa pena dela. Acho que estava pronta para pedir divórcio quando a civilização acabou. Então, viu-se presa a mim de uma forma inevitável.

Porque ficar sozinho é muito ruim.

Não que ela também fosse a minha primeira escolha para companhia no final do mundo.

Quando você lê uma coisa dessas, deve ficar se perguntando como duas pessoas permanecem casados por tantos anos pensando dessa forma. Treze, eu acho.

A verdade é que não sei.

Talvez fosse mais fácil explicar o que aconteceu com a humanidade. Sei que um dia sucede o outro, parecem voar, e você passa a aceitar aquela briga, se acostuma com os detalhes que te incomodam. Quando percebe, se foram anos dessa forma e vocês ainda estão vivendo juntos. Provavelmente juntos e infelizes, mesmo que não assumam.

E, como os dias de um casamento, os primeiros dias após o fim da humanidade se foram sem que compreendêssemos totalmente suas peculiaridades.

Então, eu resolvi que andaria nu por aí.

Foi minha primeira decisão oficial no novo mundo.

Tinha certeza que não existia mais ninguém. Nós havíamos entrado no carro e vasculhado tudo, longe e perto. Tudo mesmo. Gritávamos em ruas desconhecidas, perguntando se alguém estava lá, e obtendo apenas o silêncio como resposta. Para procurar mais do que procuramos, precisaríamos de um avião e nenhum de nós sabe pilotar.

Portanto, se não existe mais ninguém, qual era o propósito de usar roupas? Não havia nem a justificativa do frio onde morávamos.

Sugeri essa ideia para ela.

"Com todas as roupas do mundo disponíveis você acha que vou andar nua por aí?" Perguntou-me como se eu fosse algum tipo de lunático.

"É mais confortável", argumentei

"Ande nu se quiser, eu nunca mais repito uma roupa", ela deu de ombros.

Nós caminhávamos pela rua a esmo. Inicialmente é difícil arranjar objetivos quando você deixa de ter obrigações. Tirei minhas roupas ali mesmo e as joguei longe. Uma de minhas meias foi parar em cima de um poste; minha cueca, no retrovisor de um carro.

Foi uma sensação libertadora.

"Você deveria experimentar", insisti após alguns metros de liberdade. "Sabe, ninguém no planeta inteiro liga se você repete roupas ou não. E posso afirmar isso com absoluta certeza. Sou o único que sobrou."

"Você está a uma pessoa de distância de conseguir completar seu sonho egocêntrico. Mas, por enquanto, eu ainda estou aqui e ainda tenho opinião. Mesmo que você constantemente se esqueça disso. Pode não ligar, mas eu ligo. Imagine só quantas possibilidades! Quantos vestidos, calças! Tudo a minha disposição!"

Eu acabei soltando uma risada.

"Tá rindo do quê, palhaço?" Sua expressão sonhadora sumiu e ela pareceu irritar-se num piscar de olhos.

"Olhe só para nós", respondi. "Estamos fazendo planos numa situação em que a maioria das pessoas normais já teria enlouquecido."

"O fato de ser casada com você já dava claros sinais de que minha loucura datava de antes mesmo disso tudo acontecer."

"Por que não me deixa, então?" Sugeri abertamente com a intenção de provocá-la.

"Quem vai matar as baratas quando elas aparecerem?" Perguntou, enquanto tinha um tremelique. Nutria um profundo asco por baratas.

"As baratas são mesmo impressionantes", refleti. "Aparentemente sobramos só nós dois e as baratas. Todas elas. Elas sobrevivem a tudo. Algum dia nós vamos morrer e as baratas ainda estarão por aí. Donas do planeta todo."

Um detalhe que talvez não tenha mencionado é que os demais animais também pareciam ter sumido por completo, exceto, claro, aqueles seres perpétuos conhecidos como baratas.

"E eu acabo de me dar conta que estou dentro de meu pior pesadelo."

"Poderia ser ainda pior", rebati. "Você poderia estar sozinha com as baratas."

"Você joga muito sujo", ela se viu obrigada a concordar comigo, mesmo não gostando. "Seu imundo."

Essa era uma etapa muito interessante do nosso relacionamento, pensei.

Ainda Estamos AquiOnde histórias criam vida. Descubra agora