5 - Ela

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Ele tem me tratado melhor desde que o mundo acabou. Quase como era quando nos conhecemos, ainda jovens e entusiasmados. Ele é gentil, atencioso, engraçado. E tranquilo. Quando tudo parece prestes à ruir diante de meus olhos, ele é o pilar basilar que me sustenta. Não sei como consegue se manter estável assim, parece não fraquejar nunca, mas isso me acalma.

Outra noite, sugeriu que fizéssemos um programa diferente. Há um parque arborizado na nossa nova vizinhança e fomos até lá. Ele armou uma fogueira, selecionou uma garrafa de vinho e nós nos sentamos sob o belo céu noturno. A lua, como um filete, parecia prestes a minguar por completo.

Como e quando ele aprendeu a fazer uma fogueira eu nunca saberia dizer, mas nós certamente tínhamos tempo para aprender esse tipo de coisa agora.

Com o mundo vazio, não existiam mais os perigos de se ficar exposto durante a noite. Portanto, não sentíamos medo algum quando nos encontrávamos naquela situação, o que era uma mudança bastante agradável.

Permanecemos lá, ombros encostados, olhando para o crepitar do fogo, enquanto bebericávamos o vinho. O calor da bebida, bem como seu gosto amargo me preenchiam com uma sensação de entorpecimento; tudo parecia potencializado pela falta de outros estímulos.

Em algum momento, perguntei:

"O que você acha que aconteceu?"

"Não há como saber", ele respondeu com serenidade.

"Nenhum palpite?" Insisti.

"Na verdade não. Todos os dias, quando abro os olhos, penso que estive sonhando com tudo o que aconteceu e que finalmente chegou a hora de acordar desse longo sonho. Mas, então, percebo que não. Percebo que ainda estamos aqui."

"Mas se fosse, seria um sonho ou um pesadelo?" Perguntei.

Ele olhou diretamente em meus olhos.

"Acho que é mais complexo do que sonho ou pesadelo. É real. Portanto, há momentos em que tudo parece maravilhoso como num sonho e outros em que me sinto confinado em um pesadelo."

Devo concordar que essa era uma visão justa. Por vezes sentia-me exatamente da mesma maneira.

"Você acha que foi Deus?" Indaguei-o. "Alguma ação divina?"

"Achei que você não acreditasse nessas coisas, mulher."

"Eu sei, homem. É só que...", ponderei. "Quando não há explicação lógica, o que nos resta?"

"A dúvida."

"É, acho que sim."

Seus olhos refletiam de forma enigmática a luminosidade inquieta da fogueira. Foi a vez dele perguntar:

"Será que todo mundo combinou de ir embora e ninguém avisou a gente?"

Nós rimos juntos daquela ideia louca. Mas, de certa forma, tudo parecia loucura.

Tomei mais um gole do vinho, um grande. Perguntei, então, outra coisa. Uma que me afligia cada vez mais. Talvez fosse o álcool ou o conforto da conversa que tenha feito que eu expusesse minha angústia. Provavelmente uma mistura dos dois.

"Intervenção divina sempre vai nos deixar com essa dúvida. Mas, se formos pensar cientificamente então, não seria nosso dever perpetuar a espécie?"

Ele permaneceu alguns segundos em silêncio.

"Mas isso, eventualmente, não acarretaria em incesto?"

Nós rimos novamente, diante da conclusão esdrúxula. Talvez a risada fosse uma maneira de aliviar a gravidade da pergunta e da situação como um todo.

Quando o silêncio voltou, foi impiedoso.

Cobrava uma continuação.

"Ainda assim, isso faria também com que não estivéssemos mais tão sozinhos. Não me entenda mal, você tem sido ótimo..."

"Eu entendo", ele rapidamente me interrompeu. Não sei se me tranquilizava por seu entendimento ou se tomava a rapidez de sua resposta como uma crítica.

"E você sabe... Nós não estamos ficando mais novos. Meu ciclo fértil vai se encerrar e precisamos confrontar esse fato."

Ele emudeceu. Dei um tempo para que digerisse minha cobrança.

"Posso não te responder esta noite?" Ele perguntou. "É uma decisão complexa. Já era antes, quando tudo normal. Agora então..."

"Eu sei", tentei tranquilizá-lo, mesmo que não conseguisse tranquilizar a mim mesma.

O assunto se encerrou ali. Tentamos voltar para a noite tranquila que levávamos antes da conversa, mas nada mais foi o mesmo.

Ainda Estamos AquiOnde histórias criam vida. Descubra agora