3 - Ela

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Acabou a luz.

Acabou a Julia Roberts. Acabou a Meryl Streep. Acabou a Anne Hathaway. Acabou o De Niro. Acabou-se toda a minha coleção de DVDs que, descobri, eram o melhor remédio pós-apocalítico. Ouvir suas vozes tão humanas, ver suas imagens expressivas, fazia parecer que tudo, mesmo que por um breve momento, era normal de novo.

Acabaram-se também as tardes apreciando a voz terapêutica da Janis Joplin. Ouvindo a melancolia da Amy Winehouse.

Estava tudo escuro aqui dentro, tudo escuro lá fora e eu comecei a refletir onde poderia conseguir drogas para me entorpecer. Sabe, não temos mais o amistoso traficante do bairro circulando por aqui.

As luzes da rua, que continuaram a se acender automaticamente todo final de tarde, finalmente se apagaram por completo.

A cidade, por fim, era apenas uma composição de paredes frias, completamente escura e silenciosa.

E, jogada no sofá, eu estava passando por mais uma crise de pessimismo.

Meu marido encontrava-se sentado ao meu lado. Ultimamente me fazia companhia mesmo quando não gostava dos filmes, porque vê-los tinha se tornado um grande evento naqueles dias. Usava roupas, mas isso variava dependendo de seu humor. Bufou, se levantou e saiu da sala de nosso apartamento. Isso me fez refletir:

Por que ainda morávamos lá?

Poderíamos escolher qualquer outro lugar e ainda assim continuávamos lá. Alguma casa maior, com mais luxo e espaço. Com uma cama que fosse mais confortável do que a nossa.

Subitamente arregalei os olhos, a adrenalina pareceu tomar conta de meu corpo.

Temos que nos mudar agora!, pensei. Podíamos procurar por uma casa que fosse abastecida por energia solar! Podemos pegar DVDs no caminho e tudo voltaria ao normal!

Ou seja lá o que o normal representasse agora.

Ele voltou. Eu podia apenas distinguir parcamente sua silhueta escurecida, no meio de todo aquele breu. Estava recostado no pórtico da sala.

"Tive uma grande ideia!" Eu disse.

"Diga", ouvi o sorriso em sua voz.

"Nós podemos deixar esse lugar, sair daqui!"

"Prossiga", ele incentivou. Com certeza estava sorrindo, mesmo que eu não conseguisse vê-lo.

"Podemos procurar uma casa que tenha energia solar, voltar a tomar banho quente e ver vários DVDs! Mas a gente já leva o Mama Mia, claro. Sabe? Pra garantir."

"É claro", concordou ele.

"É isso?" Perguntei desconfiada. "Não vai falar nada? Não vai se opor? Qual é a sua?

"Qual é a minha? Ele repetiu. Em seguida riu. "Nada, oras. Na verdade, achei essa uma ótima ideia. Temos que começar a andar por aí mesmo. O mundo é todo nosso e nós escolhemos permanecer em um apartamento. O costume é uma coisa louca mesmo. Acho que nós ansiamos ao máximo por aquilo que é costumeiro. Uma espécie de comodismo insano. O mundo é todo nosso e nós não queremos sair da rotina."

Reclinei-me no sofá. Ele tinha razão. Era uma perspectiva insana mesmo. Não era exatamente o que tinha pensado, de fugir de uma toca para outra mais confortável, mas era uma inegável verdade.

"Mas nós vamos continuar dormindo em camas confortáveis, né?" Eu preferi confirmar.

"Sempre", ele riu novamente. "O maior legado que nossos antepassados nos deixaram."

"Eles não são necessariamente nossos antepassados, sabe?"

"Você entendeu", ele disse.

Foi a minha vez de rir. Em seguida, ficamos em silêncio.

"O que você ia falar?" Perguntei, após refletir sobre a maneira como ele entrara na sala momentos antes. Parecia prestes a falar algo. "Antes da minha epifania?"

"Epifania é uma boa palavra para o que aconteceu", deu uma risadinha contida. Em seguida emendou:

"Você sabia que ainda existem estrelas no céu?"

"O que você quer dizer com isso?" Perguntei com certo estranhamento.

"Venha ver", chamou.

Ele saiu novamente. Sem nada melhor para fazer, o segui.

Do lado de fora, pude compreender sem que ele nada falasse.

Quando as luzes da humanidade finalmente cessaram e com uma ajudinha da lua nova, as estrelas roubavam a cena. E era uma cena esplendorosa. Pontilhavam sem pudor o firmamento com seu brilho infinito. Incontáveis delas. Pareciam figuras amistosas, convidativas. Havia muito tempo que não via o céu daquela forma, se é que isso já acontecera.

Ele segurou minha mão. Senti seu toque quente, tenro. Senti um resquício do carinho que achava que estivesse perdido. Depois de tanto tempo, seu toque foi alentador, reconfortante. Como se toda aquela solidão não estivesse mais presente.

Permanecemos lá, contemplando o céu, juntos.

Juntos.

Provavelmente aquilo era mais esquisito do que o fim da humanidade.

"O que você quis dizer quando perguntou se eu sabia que ainda existiam estrelas no céu?" Perguntei, após algum tempo. "Nada filosófico como nós sermos seres efêmeros e que vamos virar poeira enquanto o universo continuará a ser infinito, né? Que mesmo que pensássemos que não, sempre estivemos fadados a extinção, sempre fomos insignificantes? E que agora nós somos os últimos. Porque é assim que estou começando a me sentir."

"Não", ele respondeu com simplicidade. "Quis dizer que o céu tava bonito pra caramba."

"Tudo bem, então", concordei.

Apertei um pouco mais sua mão.

Ainda Estamos AquiOnde histórias criam vida. Descubra agora