Antes de começar a escrever nesse diário, sempre me pergunto se alguém algum dia irá lê-lo. Eu acho que não. Mas ela me diz que é terapêutico e insiste que eu continue escrevendo. Como não tem muita coisa para fazer mesmo, eu não discuto.
Hoje preciso confessar um momento de fraqueza.
Tento agir como se tudo estivesse bem o tempo inteiro. Mas tem momentos que é difícil, simplesmente é. Apesar de acreditar que nosso relacionamento vem melhorando nas últimas semanas, existe apenas ela no mundo inteiro para que eu possa conversar. Hum, parece que de fato faz sentido desabafar com um diário, mesmo que essas palavras apenas permaneçam aqui, nessas páginas, sem serem lidas.
Durante a tarde, resolvi caminhar sozinho pelo bairro. Atualmente vivemos em um novo apartamento, um todo moderno e luxuoso, com sistema de energia elétrica integrado e reaproveitamento de água da chuva, na parte rica da cidade. Só para constar que nós somos as pessoas mais ricas do mundo atualmente.
Um grande viva para nós!
Sempre tive certeza que obteria sucesso na vida.
O que também significava que agora tínhamos a opção de assistir filmes em Blu ray, o que era impressionante. As imagens são fantásticas. Eu podia ver as rugas do Clint Eastwood como ninguém. Tínhamos também videogames, o que descobri ser realmente fascinante.
quem imaginaria que depois dos trinta e cinco anos eu me viciaria em games. Suponho que fosse apenas uma questão de ignorância.
E a verdade é que todas essas coisas juntas eram incapazes de impedir que eu me sentisse miserável de vez em quando.
Acredito que me perdi em divagações. Vamos voltar ao momento em que resolvi desvendar os pequenos mistérios daquela parte da cidade. O primeiro detalhe que me chamou atenção foi a nova composição de cores da cidade. É um processo de beleza impensável observar os tons de verde tomarem conta do cenário. Pequenas plantas começam a irromper dos espaços mais inusitados e, gradualmente, se espalham. O que antes era de um cinza monótono começa a ser tomado pela pungência do verde.
Observei as casas das pessoas ricas, agora abandonadas, sem vida. Algumas pareciam até mesmo mal-assombradas. Mesmo que assombrações, a essa altura, pudessem ser algo estimulante. Eu ansiava para que coisas diferentes acontecessem.
Congelei enquanto encarava um outdoor publicitário. Nele, uma família artificialmente feliz sentava-se diante de um belo hambúrguer que nunca mais seria produzido. Senti-me miserável por saber que nunca mais presenciaria uma cena como aquela, por mais artificial que ela parecesse. Nem comeria um sanduíche daqueles, por mais artificial que ele parecesse. Um anuncio publicitário pode significar muito mais do que simplesmente compre isso ou compre aquilo. Pode representar o retrato de uma época.
Entrei numa loja de brinquedos com a intenção de procurar por bonecos que tinham gravações em seus sistemas. Sentia necessidade de ouvir vozes humanas naquele momento de uma forma inexplicável. Uma palpitação que anestesiou meus sentidos. Precisava lembrar-me de como era. De como deveria ser.
Assim como filmes, músicas, livros e jogos eram as minhas âncoras com a humanidade já perdida, aqueles bonecos possuíam um novo significado.
Na escuridão da loja, os bonecos pareciam sustentar olhares macabros em minha direção. Peguei um deles, familiar, em minhas mãos.
"Buzz Lightyear para Comando Estelar!" Disse o boneco de Toy Story, com a voz de um dublador que eu adorava.
"Aqui é o Comando Estelar", respondi e apertei novamente seus botões.
Ele apenas repetiu aquela mesma frase.
Não seria um diálogo. Apenas uma repetição.
Assim como, no final, todas as minhas âncoras acabariam por se repetir em algum momento.
Sentei-me, boneco na mão, e chorei em silêncio.
Ao menos, pensei, ainda tinha ela. Esse seria meu consolo.
Admito que não dei o devido valor a minha esposa quando tudo ainda fervilhava com a correria do dia-a-dia. Agora, passo a entender que nada daquilo era culpa dela. Era minha, pois minha visão esteve borrada pela frivolidade da sociedade.
Não estava mais.
Em outra loja, peguei uma lata de tinta preta em spray, fui até um muro composto de tijolos avermelhados e pichei as palavras "AINDA ESTAMOS AQUI".
Encarei a frase. Cada letra parecia gritar.
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Ainda Estamos Aqui
Short StoryEssa é a história do último casal do planeta contada a partir de seus diários pessoais.