Capítulo Seis - Parte 2

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      Acordo com o sol queimando meu rosto. Entreabro os olhos devagar, mas logo volto a fechá-los por causa do incômodo clarão. A dor no alto da cabeça é forte e a minha têmpora esquerda lateja insistentemente. A garganta está seca e arranha, necessitando de água. Sinto meus membros  pesados e não consigo me mover.

Não muito longe dali escuto um barulho familiar forte e poderoso que ressoa constantemente. Meus sentidos estão voltando aos poucos e arrisco mexer a mão. Com dificuldade movo os dedos abrindo e fechando-os devagar. Tateio em volta e apalpo o chão arenoso. Areia molhada escorre entre os meus dedos.
De repente tudo volta a fazer sentido em minha mente e lembro, por flashes de memória, dos acontecimentos dos piores momentos por que já passei. A verdade me atinge como um soco. Acho que não morri. Consegui sobreviver ao naufrágio e não faço ideia de onde eu esteja. Acho que não se passou muito tempo desde que o cruzeiro que carregava toda a minha turma da escola e vários outros passageiros afundou, mas talvez eu esteja enganada e tenham se passados dias que estou aqui deitada no que parece ser uma praia.

Será que Emile sobreviveu? Não lembro de tê-la visto depois que tudo aconteceu. Será que alguém além de mim sobreviveu? Com amargura me lembro das cenas das pessoas morrendo afogadas na água ou eletrocutadas por raios. Lembro também da senhora que nunca teve a chance de conseguir se salvar e morreu sozinha e com medo sem poder correr enquanto o nível da água subia e lhe tirava o ar, ou então de Megan atingida pela haste de um guarda-sol assassino que até antes do acidente era apenas um ornamento que servia para cobrir as pessoas. A cena grotesca roda em minha cabeça diversa vezes, o sangue espalhado no chão, sua cabeça pendendo para o lado, os olhos vazios.

Arrisco enfim abrir os olhos na esperança de que na verdade tudo tenha se passado de um pesadelo, mais um de muitos entre vários que tive ao longo dos últimos dias. Mas ao encarar o nada que me envolve, me dou conta de que tudo parece real demais para não ser de verdade.

A minha frente um mar azul e impiedoso se extende. A areia branca e fininha está grudada no meu corpo e nas minhas roupas molhadas. A minha volta não há nada além de pedras, água, corpos, malas e uma floresta. Sombria, uma voz na minha cabeça alerta. Sento com dores alucinantes e noto alguns cortes nos meus braços e pernas.

Então é isso, não sei se agradeço aos céus ou o amaldiçôo, mas no fim da contas, eu sobrevivi.

Tento me erguer, mas caio frustrada, minhas pernas estão bambas e doem pra valer. Meu estômago se revira e num instinto primitivo, viro para o lado e vomito os resquícios de água salgada que engoli na tempestade. Tanto líquido se acumula debaixo de mim, que tenho a sensação de que engoli metade da água do oceano.

Ao meu redor o cenário seria paradisíaco se não fosse pelo detalhe macrabo de dezenas de cadáveres espalhados no chão. E mesmo com o calor que o sol emana durante a tarde quente, sinto frio pelas roupas molhadas que visto.

Ainda confusa com todos os fatos que aconteceram, tento levantar mais uma vez e consigo. Vacilo um pouco, mas me mantenho de pé e arrisco um passo de cada vez, quando sinto um líquido quente e viscoso escorrer para dentro do meu olho fazendo-o arder. Esfrego os dedos e vejo que é sangue. Um presente dos deuses comparado ao massacre do qual escapei. Sigo em frente e faço questão de abaixar para conferir o pulso de cada pessoa deitada por quem passo. Algumas delas estão em umas posições bem estranhas com os rostos virados de encontro a areia, esses eu não preciso verificar para saber que seus corações já não batem mais.

Depois de alguns minutos ou horas vagando, não sei dizer, exausta cambaleio e tropeço no chão. Pra onde quer que eu vá, não importa em qual direção, não há mais vida. Um súbito pânico me ocorre e sento na areia, desolada. Lágrimas quentes e pesadas escorrem dos meus olhos e me pego soluçando alto. Estou perdida em uma ilha no meio do oceano. Sozinha. Cansada. Com fome, sede e frio. Sem fazer a mínima ideia do que fazer para continuar resistindo, para sobreviver. Aquele ditado que diz sobre nadar tanto para morrer na praia nunca me fez tanto sentido quanto agora.

INCAENDIUM: Entre MundosOnde histórias criam vida. Descubra agora