Capítulo Dois

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Ao chegar em casa, sou recebida carinhosamente pelas lambidas do meu cachorro Adonis. Meus irmãos mais novos estão jogados no sofá, Zac jogando vídeo game e Chloe usando o celular.
    — Boa tarde pra vocês também, pessoas produtivas.— digo passando em frente a TV, e como resposta ouço um "oi" em uníssono.
— A mãe falou que você estava demorando muito pra chegar, — informa Zac— ela quase subiu pelas paredes quando você não atendeu o celular nas 300 vezes em que ela ligou. Ela até falou em chamar a polícia.
    —A aula terminou um pouco tarde hoje porque levaram a gente pro auditório pra fazer aqueles discursos de despedida idiotas. — explico, sentando de lado no braço do sofá, exatamente aonde minha mãe normalmente não deixa — Mas eu sobrevivi, estou bem. Nada com que se preocupar, a propósito, meu celular estava no silencioso então não ouvi ele chamando.
    — Então vai lá na cozinha falar isso pra ela. Não ligo pra onde você foi.
    Ouço uma risadinha zombeteira de Chloe e mostro um gesto obsceno pra ele, mas o garoto não parece ver de tão concentrado em dar tiros nos soldados que se aglomeram atrás de um carro tombado em uma rua destruída e assolada pelo caos. A bala disparada pelo seu fuzil atinge bem no alvo, na testa de um inimigo, e sangue se espalha por toda a tela da televisão. Em seguida, uma mensagem aparece no canto inferior dizendo que o jogador precisa recarregar a munição.
    Zac nunca foi um garoto gentil e esse comportamento mal humorado parece ter se intensificado nos últimos tempos com a chegada da puberdade. O garoto de 14 anos passa o dia jogando vídeo game e quando não está fazendo isso, ele dorme como se fosse um bebê. Com o rosto despontando algumas espinhas e o cabelo castanho desgrenhado, ele não pode ser considerado um garoto bonito que chame atenção das meninas da sua idade. Ao contrário de Chloe, que aos 13 anos exibe um rosto angelical, cabelos castanhos cacheados ligeiramente acobreados e feições doces que encantam a todos que a veem, como um charme natural, inerente à sua personalidade. Ela não precisa fazer nada pra roubar a atenção das pessoas a sua volta, só por respirar, só por existir, as pessoas são enlaçadas pelo seu sorriso tímido e sua desenvoltura delicada e frágil .
    Apesar de sermos diferentes, os três irmãos, Chloe e Zac sempre foram muito próximos, de forma que em muitas vezes me senti excluída de toda essa coisa de carisma fraterno. Na maior parte das vezes, eu não ligava pra essa conexão entre eles, mas nos últimos meses, a proximidade e a intimidade que eles mantêm me provoca certa inveja de um sentimento que eu costuma ter há eras atrás e agora é apenas um resquício de uma lembrança.
    Pondo-me de pé, saio da sala e vou à cozinha, em direção a mulher enfurecida sentada na cadeira à mesa fazendo as unhas.
    — Aonde você estava?! — ela pergunta bruscamente ao levantar a cabeça e olhar para mim.
    — Na escola. Não ouvi o celular tocar e a aula acabou mais tarde hoje.— murmuro.
    — Por que você faz isso comigo? — ela bate a mão espalmada sobre a mesa de vidro, perto demais da a cetona que cai espalhando uma trilha de líquido fedorento até o chão. Mas ela não parece se importar e ignora. — Você sabe que eu fico preocupada quando eu ligo e você não atende o celular. Parece até que faz isso de propósito pra me ver assim!
    — Caramba! Já cheguei em casa! Eu tô bem! Não fui fumar um baseado na esquina! — respondo, irritada.
    Ela encosta os dedos indicadores em cada têmpora, massageando-as como se uma impertinente dor de cabeça a incomodasse.
    — Tudo bem Elize, não vou me mais me irritar. A terapeuta disse que eu preciso dar mais espaço a você e ela está certa. Me desculpe. Como foi a aula hoje?
    — A mesma merda de sempre. — Dou de ombros.
    Os cantos de sua boca se repuxam em desaprovação, evidenciando ainda mais suas linhas de expressão e percebo que escolhi a resposta errada, contudo não pude evitar. Deixa-la brava tem sido meu hobby nos últimos tempos.
    O cabelo tingido de loiro — bem diferente do meu, curto e castanho — está amarrado em um coque bagunçado no alto da cabeça e o cansaço físico e mental é evidente pela sua postura e pela bolsa e olheiras sobre os olhos. A rotina de viver trabalhando em um hospital noites a fio sem dormir durante plantões de 24h podem ser extremamente cansativas para quem já tem seus 45 anos de idade. Não que minha mãe se queixe disso, mas tenho a forte sensação de que a maior parte do seu estresse habitual se deve ao fato de ela ter uma filha de 17 anos rebelde e com sérios históricos de problemas com más companhias.
    As pessoas que em geral que me conhecem diriam eu sou uma garota comum, muita reservada e tímida, mas minha mãe não se deixa enganar, ela sabe a filha que tem e boa parte dos erros que já cometi. Por isso ela exagera na cautela comigo, tento me esforçar para entender, e no fundo eu compreendo, mas a garota que costumava ser paciente e bem humorada não existe mais. Então quando ela começa a ter esses ataques de superproteção eu simplesmente saio, porque sei que sou capaz de atingir profundamente as feridas não curadas de alguém com poucas palavras, e não me orgulho disso.
    Subo as escadas freneticamente até o meu quarto, sei que aquela conversa não acabou, mas vou fazer o possível para adia-lá o quanto eu puder. Devido a confusão de horários do seu trabalho e minhas horas de estudo na escola, não costumamos no ver muito. E eu prefiro assim, isso evita confrontos e brigas diárias.
    Tranco a porta e tiro o pequeno porta retrato da parede que exibe a foto da família reunida em uma noite de natal há 5 anos, quando passávamos nossas férias em um chalé nas montanhas geladas do Canadá . Bons tempos. Daria tudo pra voltar a época de inocência e serenidade da infância. Estávamos todos aglomerados em volta da árvore de natal, qualquer um que visse a foto riria das poses engraçadas e nada espontâneas que fizemos diante da câmera. Chloe e eu fingíamos colocar enfeites na árvore enquanto Zac segurava um presente sentado no chão. Papai estava posicionado ao lado de nossa mãe com um braço em sua volta e no outro segurava uma xícara de chocolate quente fumegante. Os lábios de minha mãe estavam pintados de vermelho e se abriam em um sorriso sincero. Mas apesar da cena ser agradável não gosto muito de olhar pra foto, pois ela me trás lembranças de um tempo feliz que não volta mais.
    Aliás, o retrato não está colocado ali a toa, ele esconde um pequeno buraco que fiz ao nos mudarmos para a casa, pra falar a verdade, ele já estava ali antes disso, era um pequeno furinho quando percebi que se o aumentasse seria um excelente esconderijo para o dinheiro que eu tinha acumulado no ano passado. Pra uma adolescente sem emprego e que costumava gastar o dinheiro da mesada em um clique na compra de livros pela internet, a quantia aqui guardada é relativamente alta e impressionante.
    Ponho as notas amassadas na carteira e confiro meus documentos. Depois tiro a mochila debaixo da cama e termino de colocar algumas roupas que foram passadas naquela manhã. Tudo pronto para o dia seguinte, a ansiedade me consome e um misto de medo se instalam na minha barriga, então ligo meu iPod , coloco meus fones de ouvido e aumento o som no volume máximo. A canção que toca é agitada e a letra melosa, mas sempre tive um fraco por pop ruim e batidas aceleradas, o que estranhamente não combina em nada com minha personalidade e meu estilo de vida. Por ser calma, as músicas mais prováveis a serem minhas preferidas seriam as lentas, com um som mais levinho e suave, porém escutar esse tipo de música me causa tédio e, às vezes, um sentimento angustiante, então prefiro o oposto.
    A tarde passa como comumente ocorre quando não tenho mais que estudar para as provas, então fico deitada na cama alternando entre mexer na internet ou lendo um livro.
     Engraçado, os protagonistas que estampam as paginas da história acabam não ficando juntos no final. Por um momento paro e sinto uma certa semelhança comigo com a tragédia do garoto que descobre que sua vida não passou de uma mentira, e a garota que ele amou o trocou por cara bem mais velho e rico.
    Triste. Mas é a realidade de muita gente.

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    Bolhas de água me sufocam, ela me cerca por toda parte e estou cansada de lutar para me manter na superfície . Tento achar uma saída , mas percebo que estou presa debaixo de uma redoma sobre a água. Bato no vidro ferozmente e tento gritar, mas quando abro a boca a água invade meus pulmões e sinto que não posso mais aguentar. Lentamente, meus braços param de socar a parede transparente sobre a minha cabeça, sinto meu corpo cedendo aos poucos ao carinho sombrio das correntes suaves do oceano. Um cansaço me abate e sinto um sono me seduzindo a adentrar na escuridão, então faço o que ele pede.
     Fecho os olhos e não os abro novamente.

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    O despertador toca pontualmente às 6h da manhã. Acordo com aquela sensação angustiante do pesadelo que mais uma vez eu revivi na noite anterior. Ignoro esse sentimento e parto para o banheiro. Meia hora depois já estou arrumada e pronta para sair em direção ao pequeno aeroporto da cidade, que não passa de uma pista improvisada, a qual eventualmente é utilizada quando um grupo de pessoas se juntam com dinheiro suficiente para bancar um avião particular.
    A maioria dos alunos já estava aglomerada por lá. A previsão é de que a aeronave decole as 8h da manhã, olho no relógio e vejo que já são 7h30min. Observo as garotas pertencente ao clube de Megan, que trazem avantajadas bagagens para apenas passarem 7 dias fora de casa. Só a jovem ruiva, de botas pretas de bico fino e casaco rosa choque, carrega em seu carrinho 3 malas de tamanhos consideravelmente grandes, sem contar com a bolsa a tiracolo. Além disso, o time de futebol também marca presença na sala de embarque, alguns poucos não abriram mão da habitual jaqueta da liga, enquanto outros apenas vestem calças jeans com blusas confortáveis e óculos de sol.
    Uma voz feminina soa dos alto-falantes chamando os passageiros para o embarque no avião. Uma fila grande com mais ou menos 50 alunos é formada na entrada do portão, e os gritos eufóricos e a animação da galera passa a ser o sentimento dominante. A funcionária confere os bilhetes de embarque e então autoriza um a um a passar por ela. Dentro no avião, todos se acomodam enquanto eu procuro meu acento. Enfim chego a cadeira marcada como a número 15 e vejo que ela se encontra na janela próxima à turbina. Não evito uma careta ao pensar no ruído irritante do equipamento durante todo o voo.
    Quando enfim me sento, um garoto de estatura mediana, cabelos loiros bagunçados e óculos um pouco grandes para o seu rosto e meio fora de moda, se aproxima da minha cadeira e fala:
    — Oi, acho que você está sentada no meu lugar.
    — Qual o número do seu acento? — pergunto.
    — 15B e ele fica na janela.
    — Ah, me desculpe eu me confundi, então. — levanto e passo para o outro acento — Nunca sei qual é a ordem certa das cadeiras.
    — Tudo bem. — o garoto, desajeitado, põe a mala de mão no compartimento acima e senta — Ainda bem que o voo não vai ser longo, parece que pegamos as os piores lugares no avião, bem ao lado das turbinas. — ele reclama. Sua voz é um pouco fina e a fala um pouco engraçada por conta do aparelho.
    É então que eu reconheço o garoto como sendo Alexsander O'Brien, o nerd da sala. Um flash de memória me passa pela cabeça e relembro que uma vez pedi um lápis emprestado a ele e nunca mais o devolvi. Ele parece ser legal, mas nunca tive a chance de conhecê-lo melhor. Lembro que ele era um dos queridinhos dos professores de física, matemática e química. Seu talento para a área de exatas é nato, inclusive eu às vezes fantasiava uma competição entre nós nas provas de química, que como sempre fui boa nessa matéria, não ficava feliz em ver quando alguns alunos se destacavam nas provas e tiravam notas maiores que eu.
    — Verdade. Mas acho que o maior barulho não vai vir das turbinas e sim do time de futebol. — comento, e ele assente coma cabeça e um sorriso leve se forma em seus lábios.
    — Com certeza, nem me lembre.— Alexsander empurra, com o dedo indicador, o óculos grande demais para o seu rosto que escorregou pela nariz. Lanço lhe um sorriso discreto e ponho os fones de ouvido. Pela algazarra que os atletas do time fazem nos corredores do avião , a viagem promete ser longa e cansativa, mas não me importo, o medo e a dor na consciência pelo ato de rebeldia serão meus maiores problemas durante o percurso até o litoral.

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