Ainda era manhã e a casa estava vazia e silenciosa, o que poderia ser considerado um milagre quando Jón parecia ter herdado toda a energia do mundo. O pequeno não só impedia que tudo continuasse em seus lugares, como fazia questão de mostrar que o mundo é um pedaço de qualquer coisa que precisa ser explorado - e escalado, conquistado, derrubado ou quebrado. Eu sou a última pessoa que se colocaria contrário ao seu desejo de possuir o mundo e todas as coisas nele, mas minha cama? Nas primeiras horas da manhã? Era sempre uma trabalheira tirá-lo de cima do colchão e fazê-lo acreditar na minha promessa de levantar logo.
Os dias eram assim: acordar, fazer qualquer coisa, conversar qualquer coisa, comer qualquer coisa, sair por ali pelo pequeno terreno, ajudar Anton em algum trabalho, ver meu pai sair para a pescaria, ler os livros esquecidos na estante e sair pra fotografar alguma paisagem inóspita.
Aquele dia mostrou-se disposto a me colocar em outro ritmo quando vi que o café tinha acabado e sobre a mesa descansava um papel amassado e sujo de terra. Obra do pequeno Jón, presumi. Nele minha mãe escrevera com uma letra torta, mas bonita, que todos foram à capital rever os pais de Halla e o meu pai tinha ido ao porto mais cedo naquele dia. Eu estava a um passo do desespero. Meu corpo pedia pelo líquido quente.
Dizemos todos que a necessidade faz o homem. Nesse caso, a coragem.
De uma vez por todas era hora de colocar minha existência em prova. Em algum momento eu teria que encarar a face daqueles que não me queriam ali. Há muito o povo nórdico perdera a real essência de povo guerreiro, então nada me fariam. Para tomar tal coragem, agarrei também a ideia de que zelamos o título de povo mais pacífico do mundo, o que é uma meia verdade.
Todas as questões emocionais iriam esperar. Eu precisava da porra de um café.
Às vezes tudo que você precisa é de vinte segundos de coragem insana, ouvi a fala de um personagem de um filme meio bobinho e sorri para a minha capacidade de ser fantasioso quando queria.
Contando os segundos, vesti uma calça de tecido mais pesado por cima do calção que usava para dormir, joguei sobre meu ombro uma parca pesada e escura, experimentei um boné do meu pai que repousava sobre a mesa da cozinha, fechei a porta atrás de mim, sob a área coberta montei numa bicicleta que já tinha experimentado algumas vezes e tomei a vila como ponto fixo e final da minha empreitada.
Tente não morrer, tente não morrer, repeti como prece.
Com a rapidez com que atravessei a rua principal, ninguém notaria que se tratava de um rosto que há muito não circulava por ali. E eu ainda o mantinha abaixado e praticamente escondido atrás da aba do boné quando deixei a bicicleta ao lado de fora do café do Velho Baldur. Julguei prudente a minha impulsividade e até considerei-me sortudo, pois não muito demorei ali e pingos grossos atingiram a calçada. Havia pressa naquela chuva. Preferi pensar que era um sinal de que deveria entrar logo, sem cerimônias, encenação e medo, principalmente.
Alguns rostos eram conhecidos. Exatamente três, se eu contasse com o Velho Baldur atrás do balcão de madeira. Os dois reconhecidos conversavam entre os outros turistas e pessoas desconhecidas que estavam ali e eu tracei uma linha reta em direção ao balcão. Queria fazer um pedido formal, evitar levantar a aba do boné e sair dali antes que alguém visse que minhas mãos eram duas fontes abundantes de suor.
Continuei olhando para as minhas próprias mãos paralisadas sobre o balcão duro e geladíssimo.
- Um grande. - Forcei as palavras que estavam presas aos dentes, a última barreira antes dos fatídicos lábios.
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AZUL
Mystery / ThrillerO que acorda o regresso? Que sentimentos aguardam a volta? Qual é a cor de quem foi e, finalmente, retorna?