A manhã (ou como amam os loucos)

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Dentro do jipe eu estava protegido da nevasca que ainda caía pesada, mas não da presença de igual peso de Ásmundur. Soube que meus sentidos estavam certos quando ouvi, no banco traseiro, o murmurar de uma antiga saga musicada pelos mais velhos habitantes da terra de todos os homens. O som abafado veio junto do ruído dos seus dedos que acariciavam delicados a extensão do cano do revólver que fora do Velho Baldur antes de ser minha, mas que agora dele. Por minutos antes estar James, sabia então que aquele homem deixado para trás gozava da sua tranquilidade. Porém o outro, como se ignorasse minha presença, continuou brincando com o que tinha nas mãos, certo de que por alguma segurança eu continuaria imóvel. Sentia o gatilho com a ponta dos dedos, girava a arma de um lado para o outro e só depois segurou na posição correta. Ainda em silêncio apontou primeiro para o retrovisor, mirando sua própria imagem, e depois vagarosamente mirou o objeto na direção da minha nuca. O dedo posto sobre o gatilho estava pronto. Ansiava por fazer explodir o seu alvo. Sabia que poderia fazer isso. Conhecia a potência do que segurava. Sabia também que, se não fosse a minha cabeça o alvo, seria a dele, e seria meu o dedo no gatilho.

O resquício das luzes da entrada do albergue me deixou ver que Ásmundur dedicou algum tempo para cuidar da sua própria aparência. A cabeça estava inteiramente raspada, e não mais exibia os tufos isolados de cabelos que eram cortados grosseiramente. Dedicou-se também em tirar da pele toda a sujeira que carregava e por isso a exibia limpa, alva como era. Tinha saúde e estava levemente corada no alto das bochechas. Também cheirava bem, caso contrário eu teria sentido, logo ao entrar no veículo, o cheiro forte do seu corpo imundo. Não vestia os trapos que eu vi cobrir o seu corpo, mas roupas limpas e sem um único furo. Era outro homem, ou o Ásmundur que eu sempre conhecera. O que guardava a loucura apenas no dentro.

- Aquele velho filho de uma puta ainda teve a coragem de oferecer uma arma - ele resmungou sozinho para então colocar-me na conversa. - Eu até pensei em matar o fazedor de café ruim, mas só há um louco para apontarem o dedo como assassino. Você agora é um queridinho. Até tem um namorado novo - ele terminou rindo controladamente, mas ainda assim cuspia certa loucura ao parar o riso abruptamente e voltar com a tensa seriedade.

- James não é meu namorado e o café do Velho é delicioso - eu completei.

- Faça graça - ele ergueu a arma na altura dos nossos olhos.

- Mesmo que o corpo estendido seja o meu, ainda será você o assassino. Só há um louco aqui - eu repeti suas próprias palavras.

- Esquece que a sua loucura conversa com a minha.

- Em igual tom - eu completei. - Mas só você é descontrolado e burro.

- Andri! - Ele bradou ao arrasta-se pelo banco e finalmente encostar a arma fria em minha nuca. Mesmo por cima dos cabelos bagunçados, a temperatura do objeto fazia arrepiar a pele.

- Vamos resolver isso de uma vez, Ásmundur. Esse tipo de jogo não combina com o que somos. Atire de uma vez ou deixe-me atirar no vão entre os seus bonitos olhos. Você gostaria de ver o estrago que uma bala faria em seu rosto.

- Dirija. - Sussurrou ignorando minha provocação.

- Um sequestro sob tal nevasca?

- Um encontro amoroso - outra vez sussurrou voltando a sentar corretamente. - Eu sei que você quer isso. Eu sei!

A arma era novamente alvo da sua atenção. Acariciava como se o objeto lhe rendesse algum prazer. Por ordem e por lembrar-se da promessa que fizera enquanto saía aos pulos do nosso encontro no celeiro, obedeci sabendo que Ásmundur pretendia levar-me para algum lugar previamente pensado. Dirigi cauteloso até o fim da única rua principal e próximo ao porto fiz o retorno, direcionando-nos assim para as montanhas que naquele instante eram cobertas pela neve que caía densa e pela noite estendida. Se conseguíssemos ver o que deixávamos para trás, veríamos que a vila tornara-se um ponto luminoso distante. Em maior proximidade era possível observar o pé das montanhas. Havia muita neve naquela distância, mas uma nova e conservada entrada indicou que ali iniciava o caminho até onde se escondia o homem louco.

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