Yvrim
Floresta das Almas
Lia corria o mais rápido que podia, forçando sua aura e seu corpo ao máximo. Estava ferida e furiosa consigo mesma.
Como pude ser tão burra?
As árvores altas da Floresta das Almas pareciam zombar da ingenuidade da garota de cabelos loiros. A luz prata da lua cheia entrava espremida entre as copas e refletiam no bracelete no pulso de Lia, até o pássaro de asas abertas gravado nele – o símbolo de sua família – se entristecia com o que ela tinha feito no início daquele dia.
Os troncos das árvores deixavam poucos espaço para uma corrida como aquela, mas ela não se importava com isso. Como Niffj, sua destreza e agilidade eram fora do comum e não permitam que ela se chocasse com nada no caminho. Porém ela já começava a acreditar que não conseguiria manter aquele ritmo por muito mais tempo, o ferimento na testa latejava e o sangue atrapalhava a visão do olho direito.
— Não posso parar... – sussurrou ela, sem diminuir a velocidade da corrida – Não vou parar até que ele esteja morto.
Fazia dois longos anos que estava caçando aquele Espectro, o Espectro que ajudara a matar sua família. Sua mãe, seu pai, todos no palácio estavam mortos e ela não esteva lá para salvá-los. Como podiam chamá-la de guardiã? Nayrú também tinha culpa naquilo, ele escolheu não fazer nada, mesmo sabendo o que estava para acontecer. O arcano nunca violava sua regra mais importante: não interferir na vida humana. Mas era a vida de seus pais e ela ia até a camada mais profunda do Mundo Não Físico para se vingar se fosse necessário.
Acelerar ainda mais a corrida era impossível, estava nessa perseguição há mais de uma hora e sua velocidade começava a diminuir. A Niffj concentrou sua aura nos músculos das pernas, correu por mais alguns metros dando um último impulso e saltou. O chão em volta tremeu com o impacto de seus pés e um buraco se abriu no lugar do salto. Lia foi lançada por cima das copas das árvores mais altas que alcançavam fácil os quinze metros de altura. O curto cabelo loiro e ondulado da garota esvoaçava ao vento, quase escondendo o rosto jovem e ela pôde ver o céu estrelado e a lua brilhante tão perto que sentia que podia tocá-los se esticasse os braços. Mas não o fez, precisava deles para equilibrar-se no ar e impedir que encontrasse o chão com nada além de suas pernas que, ela torcia, deveriam aguentar o impacto.
Quando mergulhou novamente nas copas pode distinguir uma sombra que se destacava na escuridão da floresta. Essa sombra movia-se incrivelmente rápido e parecia deixar um rastro de fumaça negra pelo caminho que também se destacava na escuridão com seu brilho peculiar.
Kraj, pensou Lia. Logo ela percebeu por que não conseguia alcançá-lo: ele havia se coberto com a própria aura corrompida, uma energia tão perversa e podre que corroía tudo à sua volta. O solo em que pisava se enegrecia e secava, as plantas rasteiras murchavam e viravam pó. Até as árvores maiores simplesmente se desfaziam como se tivessem recebido a carga de milhares de anos de uma vez só. Era a principal característica da aura de Kraj: sugar vida.
Quando viu que Lia o tinha alcançado, ele parou e virou-se para fitá-la nos olhos que brilhavam em um tom escarlate vivo que indicava a energia inquieta que a preenchia. Ele também estava bastante ferido por ter lutado com ela momentos antes, mas ainda tinha forças para levar seu plano a diante.
— Liana, eu gostaria poder terminar isso de forma diferente – disse ele entre um ofegada e outra. – Eu fiz o que fiz apenas para abrir seus olhos.
— Você matou meus pais, me drogou e eu acabei... – Ela não conseguiu terminar a frase. A imagem daqueles aldeões mortos lhe voltou à mente. Limpou o sangue que escorria sobre o olho e continuou: – Pare de falar besteiras!
— Você é tão cheia de raiva, Liana. Veja nosso estado, estamos a ponto de nos matarmos, e para quê? Podemos superar essa cultura de ódio eterno entre Áureos e Espectros. Nós somos diferentes!
— Não me compare a você! – rugiu Lia e partiu para o ataque.
Apesar de ferido, a aura de Kraj ainda pulsava forte ao contrário de Lia que estava exausta da batalha e dos efeitos da poção que tomara horas antes. Os socos que desferia já não tinham mais a mesma potência de antes e Kraj apenas se inclinava para os lados para desviar dos golpes.
— Me perdoe por isso – disse ele segurando o pulso da Niffj e atirando-a contra o tronco de uma árvore. Sabia que aquilo não a mataria, só precisava que ela usasse seu dom contra ele.
Lia chocou-se contra a árvore com violência e caiu entre as moitas. Sua roupa rasgou com o atrito e mais sangue deixou o ferimento de usa testa. Mas ela levantou-se rápido e voltou para o embate como se aquilo não fosse grande coisa.
Kraj encostou a mão coberta pela fumaça negra em uma árvore próxima e seu tronco apodreceu no local do toque. A planta rangeu e despencou sobre a loira que não teve outra opção se não segurar as centenas de quilos de madeira que tentavam esmagá-la. Ergueu as mãos pequenas manchadas com seu próprio sangue e deteve a queda da árvore.
Em condições normais, Lia não teria dificuldades para lhe dar com algo trivial como mover o tronco de uma árvore, no entanto, seu corpo estava debilitado. O peso se mostrou muito maior do que podia suportar e acabou fraquejando, caiu de joelhos com a árvore sobre o ombro.
Kraj, percebendo que Liana estava no seu limite, correu até ela e tirou a pesada planta que ele mesmo havia derrubado sobre ela. Com um estrondo e fazendo o solo vibrar, a árvore caiu a alguns metros ao lado da Niffj.
O Espectro ofegou com o esforço e penteou os cabelos negros com a mão, para permitir que seus olhos azuis fitassem a garota ajoelhada e cansada à sua frente.
— Não pode me matar, Liana, nem eu a você – falou ele em tom amigável – eu já disse: somos diferentes de todos. Eu conheço seu dom.
Ainda ajoelhada e arfante, a Áurea levantou o olhar furioso para Kraj. Ele se referia a peculiar habilidade de Lia de poder expandir sua aura além do corpo.
Os Niffjs, como Áureos de poder restritamente físico, não eram capazes de fazer sua energia interagir com outros elementos como os Nahins ou os Soma. Entretanto, Lia ia contra essa constante áurea e aprendeu a lançar sua aura pelo ar como um ataque poderoso, mas ela raramente fazia isso já que era algo extremamente extenuante.
— Como sabe disso? – perguntou ela, fazendo força para se levantar. Não ficaria ajoelhada diante de Espectro nenhum.
— Eu estive procurando você por muito tempo. Ouvi muito sobre você. – Ele deu as costas para ela e se afastou enquanto olhava para o céu noturno. – A Áurea que se rebelou contra o Arcano Nayrú e contra suas leis, a filha de Beraal Elenor e princesa do Reino do Norte. A rebelde vermelha.
— Não me chame assim – disse Lia entredentes. – E não coloque o nome do meu pai na sua boca!
— Sua irmã também é um prodígio, não é? – Ele virou-se novamente para encarar sua adversária. – Lara, a Nahin que aprendeu a dominar dois elementos ainda bem jovem.
Ele podia sentir a aura de Lia crescendo com sua raiva, era do ódio dela que precisava. Era triste ter que fazê-la nutrir sentimentos tão horríveis por ele, mas era necessário. Então ele continuou:
— É verdade que você cortou qualquer laço com o Palácio da Luz? Ou o próprio Nayrú a expulsou de lá depois de ter matado aqueles homens?
Aquilo foi a gota d’água para Lia. Não se arrependia de ter feito o que fez com os Bárbaros que tinham invadido sua antiga casa, mas ouvir Kraj falando como se ele fosse um juiz que a julgava culpada por seus crimes, era demais para ela suportar. Não sabia se conseguiria sobreviver se usasse seu dom, mas já não se importava mais, tinha cometido muitos erros para esperar redenção, acabaria com aquilo ali mesmo.
Aumentou sua aura ainda mais e seus olhos passaram a brilhar em um vermelho ainda mais forte. Seu corpo também passou a emitir um halo de luz avermelhada que começou fraca, mas logo aumentou de intensidade. Kraj não se moveu, estava no lugar certo e na hora certa.
O nível de poder da Niffj estava perigosamente perto do que seu corpo podia suportar, seus músculos pareciam querer se partir com a pressão. A mão direita de Lia concentrava a maior parte daquela energia e já pingava sangue com os vasos sanguíneos começando a se partir. Não podia mais parar.
— Durantes esses dois anos minha vida foi ainda pior do que já era graças a você, Kraj. – Seu corpo todo vibrava com a intensidade de sua aura.
— Não fui eu quem estragou sua vida, no momento que sua aura despertou, seu destino já estava traçado: dor, violência e perdas. É assim para todo Áureo.
— Cala a boca! – Lia partiu para findar aquele assunto e finalmente vingar a morte de seus pais.
Assim como a aura negra do Espectro, a energia de Lia passou a deixar um rastro luminoso no ar, uma trilha vermelha que evaporava em contato com o oxigênio. Quando chegou perto o suficiente para que as duas auras se tocassem, ouviu-se um chiado baixo, uma tentando anular a outra.
Ela só precisava de um golpe para acabar com ele, a concentração de poder era tão grande que destroçaria até mesmo o corpo mais resistente. No entanto o soco de Lia parou quando encontrou a mão de Kraj no caminho. Ele havia simplesmente segurado seu punho. Estava sorrindo.
— Peço desculpas pelo que farei agora, Liana, mas, como eu disse antes, isso é necessário.
Só então Lia pôde ver um amuleto pendurado no pescoço do Espectro. Era metálico e tinha o formato da cabeça de um touro furioso, seus olhos eram duas pequenas joias azuladas que começaram a brilhar enquanto Kraj recitava palavras estranhas. Magia.
Lia percebeu que sua ingenuidade tinha feito com que ela novamente caísse em mais uma armadilha daquele Espectro calculista. Durante toda a luta ele estava apenas manipulando-a para que ela deixasse sua aura exposta. Sua raiva cresceu ainda mais, e não era direcionada a Kraj, tinha raiva de si mesma por ter sido tão enganada mais uma vez.
Ela tentou desesperadamente se desvencilhar da mão forte do Espectro, mas seu corpo não respondia mais, sentia os braços adormecerem e a cabeça pesar. Ele a mataria?
— Sabe por que só me encontrou agora, depois de dois anos? – ele perguntou, arrancando o cordão com o amuleto do pescoço. – Eu estava ocupado colecionando auras de outros como você. E eu confesso que se soubesse antes que você era tão especial, eu teria começado com você, Liana.
Os olhos do touro furioso brilharam ainda mais e Lia sentiu como se sua alma estivesse sendo sugada para aquelas duas joias azuis. Aquilo não era magia simples, era algo mais poderoso e profundo.
Lia conseguiu ver sua aura vermelha ser lentamente guiada para o amuleto, como se aquele artefato estivesse hipnotizando seu poder e obrigando a deixar seu corpo. Ela tentou se debater e gritar, tudo em vão. Kraj não se movia um centímetro, concentrado em seu feitiço macabro.
Um sono forte caiu sobre os olhos de Lia, sua aura estava sendo drenada cada vez mais rápido e ela logo estaria completamente vazia, seca como as plantas que Kraj pisava. No entanto, ele parou. O amuleto animalesco ainda brilhava, mas ele não se alimentava mais da energia da áurea.
Sentindo seus braços e pernas pesassem uma tonelada, Liana despencou para o chão e Kraj a segurou em seus braços. Seus olhos não tinham mais a cor escarlate de antes, agora exibiam o tom cor de mel herdados de sua mãe. Ela ainda lutava contra o cansaço.
— Me... Me solte, maldito – balbuciava ela. – Não... toque em mim.
— Você não vai morrer, Liana – disse Kraj, acariciando o rosto machucado da garota. – Tenho que fazer isso pelo meu povo. Chega de caçadas contra Espectros. Eu poderia simplesmente matá-la agora, mas eu não posso fazer isso porque... eu te amo.
Lia queria socá-lo até matá-lo. Como era capaz de dizer que a amava depois de ter cometido tantas atrocidades? Espectros não tem coração, não podem amar.
Kraj deitou-a com cuidado no chão frio da floresta e se afastou. Agora restava a etapa mais arriscada de seu ambicioso plano: a travessia.
Havia atraído Liana para aquele lugar pois era o ponto perfeito para a abertura da fenda, se algo desse errado poderia ser desintegrado. Virou-se para Lia e viu que ela se esforçava para se levantar novamente.
Você não desiste mesmo, não é?
Continuou seu ritual, não importava o quanto ela tentasse, não tinha mais forças para desafiá-lo. A fenda também a carregaria para algum lugar do Véu. Era melhor assim, não seria capaz de matá-la, não era tão fria esse ponto.
Kraj colocou o amuleto de volta no pescoço e recitou novamente o encantamento que vinha treinando por tanto tempo. Se aquilo desse certo ele finalmente mostraria para Nayrú o verdadeiro poder de um Espectro.
Enquanto repetia as palavras cada vez mais alto, um círculo de luz branca se formava em volta dos dois. No começo era simplesmente uma linha brilhante que queimava as folhas secas em seu caminho, mas logo a luz se intensificou e cresceu em uma redoma brilhante que ofuscou os olhos de Lia.
Ela conhecia aquelas emanações apesar de nunca ter testemunhado tal fenômeno. Era o Véu, Kraj estava abrindo uma fenda no Véu, algo que ela julgava ser possível apenas para um Arcano.
— Pare... com isso, Kraj – falou com dificuldade. – Vai matar nós dois!
— Não se preocupe, minha amada, me preparei para isso por muito tempo.
Era verdade, no entanto, abrir caminho na energia que envolve as três dimensões é algo que até mesmo os Arcanos evitam fazer tamanho é o risco. Kraj não se importava com os riscos, para ele o único perigo era ser caçado para o resto da vida pelos Áureos de Yvrim.
A redoma de luz só aumentava com a energia liberada pelo amuleto do Espectro. As árvores por perto pegavam fogo com o calor emitido pela bolha branca e eram incineradas quando tocadas por ela. Até que a expansão parou. Dentro daquele brilhante mundo de luz, Lia não podia ouvir mais os sons da floresta, seu corpo estava adormecido e sua cabeça rodava. Conseguiu vira-se de bruços com muito esforço, apenas para ver que Kraj a fitava com um sorriso indecifrável no rosto.
— É chegada a hora, Liana. – Seu tom de voz era calmo. – Talvez ainda possamos nos encontrar um dia. Eu espero realmente que isso aconteça.
— Eu... tenho que te... matar...
A redoma de Luz retraiu-se novamente. Com velocidade de um piscar de olhos, toda aquela energia que os envolvia fechou-se sobre os dois, lançando-os para a infinita vastidão do Véu. Dali a pouco uma grande explosão criada pelo desequilíbrio de forças entrando e saindo pela abertura, destruiria quilômetros da sagrada Floresta das almas, deixando para trás fogo e destruição.
Sendo carregada por aquela corrente de energia, Lia pôde apenas entregar-se ao sono, já não podia mais lutar, cada molécula do seu corpo parecia fugir umas das outras. Ainda conseguiu ver pequenas gotas do seu sangue flutuando naquele ambiente sem gravidade.
— Me desculpem, mamãe e papai... eu falhei.
A luz a consumiu e ela pôde finalmente descansar.
VOCÊ ESTÁ LENDO
𝑨́𝒖𝒓𝒆𝒐𝒔 - 𝑪𝒂𝒎𝒊𝒏𝒉𝒐 𝑷𝒂𝒓𝒂 𝑺𝒉𝒊𝒏𝒆̂ (Degustação)
Fantasy☆Vencedor do prêmio Escritores de Ouro como melhor capa e sinopse. ☆Primeiro lugar em fantasia no Concurso Leitura Nacional Áureos, pessoas nascidas com o sopro da energia que preenche o espaço entre as três dimensões. Vindas ao mundo com a missão g...