{2} DE VOLTA PARA A MONTANHA

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    Havia luz. Muita luz. Tanta que os olhos de Barton ardiam e sua pele queimava. Mas também havia escuridão, os dois opostos o cercando ao mesmo tempo tentando em vão se misturarem... Ou se destruírem.

    Dentro da escuridão, coisas se escondiam e o observavam, podia ouvir as respirações que não eram humanas, várias delas. As coisas arranhavam suas garras no chão. Eram agressivas.

    No entanto, a luz também escondia algo ou alguém. Dentro dela, ele podia ver um par de olhos vermelhos, não como olhos demoníacos, eram olhos de alguém frágil, debilitado... triste. No final a luz venceu a batalha e a escuridão se retraiu com as coisas que se escondiam nela e quando Barton achou que só a luz prevaleceria, uma gota de sangue manchou a brancura daquele brilho. Era algo pequeno e insignificante, uma única gota, porem, aquilo o fez sentir algo forte em seu peito e não soube dizer o que era.

    Olhou em volta em busca de alguma rota de fuga e viu que estava dentro de uma caverna.

    Barton acordou com um sobressalto, de olhos arregalados e molhado de suor. Estava em seu quarto. Ascendeu a lamparina ao lado da cama e secou a testa.

     — Que droga foi essa? – sussurrou, piscando várias vezes para se certificar que estava acordado. Não era de ter pesadelos estranhos como aquele, os dele costumavam fazer mais sentido.

    Levantou-se para espiar entre as frestas da janela, ainda estava escuro, mas o sol já dava sinais de que mais um dia estava prestes a começar. Já não tinha mais sono, então resolveu ir até a cozinha e preparar o chá para seu avô.

    Barton odiava chá – de qualquer tipo – o que era um problema pois era a única bebida quente de que dispunham em Orm. Preferia o mingau insosso com pão, não era a melhor refeição do dia, mas era melhor do chá.

    Pegou sua tigela de mingau quente e sentou-se à mesa, pensativo, apenas a chama trêmula da lamparina lhe servindo de companhia. As imagens vívidas do sonho lhe voltaram à mente com um turbilhão. Luz, escuridão e sangue. Se contasse isso para seu avô, ele com certeza diria que era um mau presságio. Barton gostaria de acreditar que era só um sonho estranho mas até ele não conseguiu se convencer.

    Quando terminou de comer ficou um bom tempo olhando para o fundo da tigela brincando com a colher, perdido em pensamentos. Até que Montes apareceu na porta da cozinha e o encontrou solitário ali. Apesar de estar quieto, seu avô sabia diferenciar a presença de alguém.

    — O que aconteceu, Barton? Sem sono? – Sua bengala fazia um barulho seco no assoalho enquanto ele mancava até o neto.

    — Foi só um sonho ruim, vovô – disse ele largando a colher e se recostando na cadeira.

    — Está nervoso com a Contagem? – perguntou o velho, sentando-se ao lado do neto.

    — Não, é que... Não é nada.

    — Não ignore isso, Barton. Sonhos são uma forma da alma se comunicar com a razão.

    — Então minha alma é péssima em enviar mensagens, porque eu não entendi nada.

    Montes sorriu. Nem sempre suas frases filosóficas eram interpretadas da maneira correta.

    — Eu já fiz o seu chá – avisou Barton, esticando-se para pegar o bule na mesa. – Quer um pouco?

    — Claro que sim, obrigado.

    O dia começava a clarear lá fora. Ele tinha passado tanto tempo encarando aquela tigela que nem tinha visto o tempo passar. Serviu o chá de Montes e voltou para o quarto para vestir sua jaqueta.

    Quando saiu na rua, o ar ainda era frio e continuaria assim até a metade da manhã. Cobriu a cabeça com o capuz e escondeu as mãos embaixo dos braços. A primeira coisa que fazia era verificar a horta ao lado da casa e ver se algo já crescia. Não fazia nem três dias que tinham semeado as sementes de cenouras, então a terra continuava exatamente igual ao dia anterior, mas fazia aquilo todos os dias e a tanto tempo que já era algo automático.

    A área de plantio não era muito grande, não passava de dez metros quadrados. Tinham que ser pequenas plantações já que havia apenas uma Nahin da terra para cada vila cultivadora. Como o solo era pobre e seco, Nahins da terra eram designados para as vilas para que usassem sua aura para fazer as plantas a crescerem.

    Isso não tinha nada a ver com piedade da parte de Kraj ou de Shans, o imperador daquela região. Sem os Nahin nas vilas os humanos morreriam de fome e os Espectros precisavam de escravos vivos, então permitiam que esses Áureos vivessem nas aldeias, sempre vigiado pelos capitães.

    A Nahin de Orm se chamava Morá e esteve ali entre eles desde que Barton podia se lembrar. Mesmo seu avô e seu pai não se lembravam quando ela havia sido designada já que os Áureos envelhecem bem mais devagar que os humanos.

    Depois que se cansou de olhar para aquele pedaço de chão fértil, Barton, foi até o poço pegar água.

    O dia ali começava cedo e muitas portas já estavam abertas e as ruas estreitas já exibiam pessoas indo e vindo, recomeçando a rotina.

    O poço ficava perto da pequena praça na entrada da vila, um amplo espaço em forma de círculo que era onde todos eram reunidos durante as contagens e que era basicamente um símbolo de opressão em Orm.

    Barton pegou o balde metálico e o lançou no fundo do poço para depois puxá-lo com um corda. Assim que o recipiente chegou ao topo cheio de água barrenta, uma voz atrás de si o cumprimentou:

    — Bom dia, Sr. Aton.

    Ele virou-se e quase derramou a água com o susto. Morá o fitava com seus olhos verdes que mais pareciam duas esmeraldas. Era uma mulher madura com cabelos castanho-amadeirado cuidadosamente arrumados em uma trança jogada por cima do ombro. Trajava o tradicional vestido solto de Orm, mas ficava claro que não era humana para alguém que se atentasse para a postura confiante com que caminhava, mesmo depois da derrota na guerra, os Áureos não abandonaram seu orgulho.

    — Bom dia, Morá – respondeu Barton, equilibrando o balde nos braços. – Eu gostaria que não chegasse de fininho assim novamente, me assustou.

     — Ah, me desculpe, não tive a intenção.

    Barton podia não gostar muito dos guardiões, mas Morá, como Áurea da vila, era também a líder ali e todos deviam suas vidas a ela e por isso ele tinha certo respeito pela Nahin que fazia de tudo para ajudá-los.

    — Como está a horta do seu avô? – quis saber ela, aproximando-se do rapaz.

    — Igual. Faz pouco tempo que semeamos.

    — Quer que eu dê uma acelerada nela?

    — Não, está tudo bem. – Barton não gostava quando Morá usava sua aura para fazer as plantas crescerem mais rápido, preferia que as coisas acontecessem naturalmente, embora vez ou outra, eles precisassem de ajuda com a fertilidade da terra.

    — Como foram as negociações ontem em Sári?

    — Preços altos de novo – falou ele com um suspiro. – Se continuar assim vamos te que dar toda nossa produção para conseguir um prego.

    Morá falou algo, mas Barton não ouviu, estava olhando para a Montanha Pedregulho além da floresta mirrada. As memórias daquele sonho lhe voltaram à mente.

    Será que a caverna do meu sonho era a mesma da montanha?

    — ... e eles precisam de bom senso para... – Morá parou de falar vendo que Barton estava com o olhar distante. – Tudo bem com você, Sr. Aton?

    — Ahn? Sim, sim. Só me distraí um pouco.

    — Eu sou tão entediante assim? – Ela sorriu.

    — Desculpe, Morá, é que eu tenho que voltar agora. Até mais tarde.

    Barton voltou pela praça com passos rápidos e deixando a água cair pelo caminho.



    Já passava do meio dia quando Barton terminou seus afazeres na horta. Montes, como sempre, o havia ajudado com tudo que podia na terra, mas suas habilidades eram mais apreciadas na cozinha quando começava a preparar o almoço, tarefa em que Barton era um verdadeiro desastre. Deixava tudo a cargo do velho Montes.

    Decidiu então ir até a casa de Johá e importuná-lo um pouco, a essa hora do dia provavelmente ele estaria enfiado em seu quarto com a cabeça enfiada em algum livro empoeirado.

    Os sons do movimento de Orm eram maiores no final da manhã. Barton acreditava que isso acontecia por que era o momento em que o sol era mais forte e conseguia vencer um pouco a parede de nuvens que sempre o encobria, fazendo com que um ou outro raio mais quente vazasse entre elas. Isso deixava as pessoas mais ativas como se aqueles filetes de luz os revitalizassem, pelo menos era assim que Barton se sentia.

    A casa de Johá era um pouco maior graças ao cômodo aberto onde Hafik Perin trabalhava a madeira seca que extraia da mata próxima, transformando-a em mesas, cadeiras, portas e todo tipo de objeto no uso diário na vila.

    Hafik era um homem forte e grande, Barton sempre dizia a Johá que deveria tentar nascer de novo e herdar mais da genética do pai.

    — Bom dia, Sr. Perin – falou Barton, entrando na oficina. O cheiro de serragem e madeira molhada predominava. – Onde está Johá?

    Hafik ergueu a cabeça da perna de cadeira que ele pregava e sorriu para Barton, a barba rala que lhe cobria o queixo o deixava mais velho do que realmente era.

    — Bom dia, Barton. Ele está organizando aqueles livros de novo. Pode entrar.

    — Obrigado.

    Assim que Barton entrou pelo corredor para ir até ao quarto do amigo, sentiu o cheiro delicioso de pão assado. A Sra. Lahj, a mãe de Johá, era uma cozinheira de mão cheia, até mais do que seu avô e toda vez que o via, convidava-o para comer alguma coisa. Desde que sua mãe morreu, Lahj foi a pessoa que ajudou Montes na criação de Barton e era por considerá-la como uma segunda mãe que Barton tinha Johá como um irmão além de amigo.

    Uma garotinha de bracinhos finos surgiu pelo corredor balançando suas trancinhas enquanto envolvia Barton em um abraço desajeitado – ou meio abraço já que ela só tinha altura para alcançar as pernas do rapaz.   

    — Bartinho! Veio almoçar com a gente hoje? – Mila tinha apenas oito anos e era tão esperta quanto o irmão.

    — Não, Mila, só vim falar com Johá – falou ele, afagando a cabeça da pequena. – Pode me levar até ele?

    Mila nem respondeu, segurou a mão de Barton e o arrastou pelo resto do corredor até a porta estreita do quarto do irmão. Sem bater, ela entrou gritando:

    — Olha quem está aqui, Johá!

    Johá estava empilhando alguns livros em cima da cama para limpar uma das estantes e deu pulo com o estardalhaço da garotinha.

    — Pra quê esses gritos, Mila? – reclamou ele, equilibrando a torre que balançou perigosamente com o suto.

    — O Bartinho veio nos visitar! – ela falou com ainda mias ênfase, ainda segurando sua mão.

    — Olha vejam só, o cara que vejo todo santo dia está aqui! Que surpresa incrível! – O tom de Johá era jocoso. – O que aconteceu, quer que eu ter ajude com seu treinamento de espada de novo?

    — Não, talvez amanhã. É que eu queria conversar com você sobre algo muito estranho e... – Ele parou de falar e viu que a pequena Mila ainda estava ali. – Mila pode nos deixar sozinhos um pouco?

    — Mas eu quero brincar também! – falou ela, fazendo bico.

    — Não vamos brincar, sua boba. Pega isso. – Johá pegou uma revista de moda com as páginas desbotadas e entregou para a irmã. – Leia, vai ser sua lição do dia.

    — Eba! – Ela pegou a revista e correu para fora. Mila estava aprendendo a ler bem rápido e também demonstrava a mesma paixão do irmão pelas palavras.

    — E vê se não rasga, ouviu? – gritou Johá antes de fechar a porta. Voltou-se para o amigo com as mãos no bolso. – Senta aí, Bartinho.

    — Se Mila te ouvir me chamando assim vai ficar com ciúmes.

    — Ela adora inventar esses apelidos. Sobre o que você queria conversar?

    Barton suspirou e puxou a cadeira da escrivaninha para se sentar.

    — Eu tive um sonho muito estranho ontem à noite.

    — Um sonho? Foi por isso que veio aqui?

    — Foi muito real. – Barton inclinou-se sobre os joelhos e ficou brincando com o fecho da jaqueta. – No começo era escuro e coisas rastejavam e me observavam depois surgiu uma luz forte e eu pude ver um par de olhos vermelhos e tinha sangue na luz...

    — Olhos vermelhos, tipo um Áureo? – perguntou Johá sentando-se na cama ao lado da pilha de livros.

    — Não sei, acho que sim.

    — Luz que sangra? – Ele franziu o cenho. – Estranho mesmo. O que você comeu antes de dormir?

    — Isso é sério, cara. E tem mais – sua voz diminuiu de tom –, acho que o lugar desse sonho era na caverna da Montanha Pedregulho.

    Em um instante Johá entendeu tudo.

    — Ah, então é isso? – disse ele, estufando o peito. – Veja só, ontem você me disse para eu tomar cuidado com pesadelos sobre aquele lugar e olha quem acordou assustado durante a noite! – Deu um tapa de leve na perna do amigo e continuou: – Esquece isso, cara, você só está impressionado porque visitamos um lugar especial para nós depois de muito tempo e...

    — Eu vou entrar lá hoje á tarde – revelou Barton.

    — O quê? – Johá arregalou os olhos. – Que maluquice é essa agora? Pensei que o que disse ontem fosse apenas provocação.

    Ele não sabia como explicar aquilo para Johá. Desde de que acordara, não tirava aqueles olhos da cabeça e algo nele o instigava a ir até aquela caverna.

    — Eu preciso ir até lá.

    — Sabe muito bem que a Sra. Nahin proibiu qualquer um de entrar ali.

    — É, ela tem um monte de regras, mas não somos mais crianças e eu sinto que tenho que ir lá.

    — Então agora você vai se arriscar por causa de pressentimento? – Johá não estava reconhecendo o amigo que nunca foi de acreditar naquele tipo de coisa.

    — Não tem nada lá dentro, Johá.

    — Então o que vai fazer lá?

    Barton não soube responder, simplesmente queria ir. Um desejo mais forte que a curiosidade que tinha quando era mais novo.

    — Eu tenho que ir ou não vou conseguir me concentrar em mais nada – falou, se levantando para ir embora.

    — Tudo bem então eu vou com você.

    — Sério mesmo?

    — É claro. Vai ser como antes, quando você me arrastava nas suas maluquices, só que dessa vez eu vou porque quero – comentou Johá como queixo erguido. Entrar naquela caverna proibida seria um divisor de águas, um ritual para finalmente deixar para trás a infância de aventuras imaginarias que os dois tiveram. – E além do mais, alguém tem que estar lá quando tudo der errado para dizer um bem pronunciado eu te avisei.

    Barton sorriu. Johá disfarçava bem a vontade de ver a lendária caverna por dentro.

    — Passo aqui mais tarde – disse ele.

    — Não vai esperar para comer uns pãezinhos? Estão quase prontos?

※※※



    — Já não comeu o bastante desses pães? – perguntou Barton. – Eu acho que já contei uns seis.

    — Quando se trata dos pãezinhos da minha mãe, não existe essa de comer o bastante, muito nunca é o suficiente – respondeu Johá com a boca cheia.

    Os dois já subiam a encosta do morro e se preparavam para explorar a caverna. A entrada ficava do lado mais afastado da trilha principal e era pouco visível para alguém que não a estivesse procurando. No entanto, Barton e Johá conheciam aquela área até de ponta cabeça.

    — E se a história dos monstros vivendo lá dentro for mesmo verdade? – perguntou Johá, guardando o resto dos pães no bolso.

    — São apenas mitos. Para de ser medroso.

    — Não estou com medo, só estou sendo cauteloso.

    — Se não quiser ir é só dar meia volta – provocou Barton, colocando as mãos no bolso da jaqueta.

    — De jeito nenhum. Acha que eu vou ficar fora dessa? É como dar um final para nossas fantasias: visitar o último reduto de mistério nas redondezas da Vila Orm. – Enquanto ele falava, estendia a mão espalmada no ar como se pudesse ver as letras na sua frente.

    — Se vai mesmo, então não fique reclamando.

    Ao passo que subiam a Montanha Pedregulho, a vila ia ficando cada vez menor encolhida entre aquelas árvores retorcidas e sem folhas. O clima da tarde era ameno e o vento que corria no topo do morro deixava tudo mais fresco, mesmo assim, quando ficaram frente a frente com entrada da caverna, uma onda de calor passou pelo dois.

    — Nossa, que canseira. – Johá estava ofegante. – E pensar que a gente subia aqui correndo quando éramos moleques.

    Barton encarnava o buraco escuro na sua frente como um monstro adormecido de boca aberta, exatamente como imaginava anos atrás. As rochas na parte superior davam a impressão de serem dois olhos fechados em agonia, como se o monstro de pedra estivesse sentindo dor por toda a eternidade.

    — Não parece mais amistoso desde a última vez que estivemos aqui – observou Barton. Gostava de se convencer que aquele lugar não tinha nada de mais, mas depois de tanto tempo ouvindo histórias de criaturas das trevas que comiam criancinhas, parte de seu subconsciente acolheu aquilo como verdade e agora o fazia querer voltar para casa. Mas outra parte, a parte que tinha surgido na noite passada com aquele sonho, o instigava a entrar. E foi esse instinto que ele obedeceu.

𝑨́𝒖𝒓𝒆𝒐𝒔 - 𝑪𝒂𝒎𝒊𝒏𝒉𝒐 𝑷𝒂𝒓𝒂 𝑺𝒉𝒊𝒏𝒆̂ (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora