{1} ORM

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Híon
175 ANOS APÓS A ABERTURA DA FENDA



    — Quanto tempo faz desde a última vez que viemos aqui? – Johá perguntou estreitando os olhos para ver o horizonte árido à sua frente.

    — Sei lá. Sete? Oito anos? – arriscou Barton. – Parece que foi uma vida inteira atrás.

    Os dois amigos estavam no topo do morro que era conhecido como Montanha Pedregulho. Não chegava a ser uma montanha e nem havia tantas pedras assim pelo chão, mas o lugar tinha recebido esse nome há muito tempo e certamente tinha outra aparência, assim como o nome da vila onde moravam, Orm. Barton nunca soube o significado e nunca se interessou em saber, não fazia diferença, continuaria sendo sem graça.

    No entanto, a Montanha Pedregulho era diferente. Era ali que Barton e Johá se aventuravam quando crianças, seu próprio mundo de fantasia. Johá sempre imaginava ser um áureo poderoso que livrava a Terra dos Espectros maus, Barton preferia ser um soldado corajoso que lutava com espada e escudo, como seu pai. Na verdade, não exatamente como ele, já que o odiava, o usava como referência apenas por não ter ninguém melhor.

    — Por que deixamos de vir aqui? – perguntou-se Johá, fechando os olhos para aproveitar a brisa fria do fim de tarde. – Esse silêncio... é tão relaxante.

    — Porque não somos mais crianças, Johá. – Barton estava de braços cruzados, em pé ao lado do amigo. – Temos que ajudar na vila agora.

    — Isso não é desculpa para não vir aqui de vez em quando relembrar o passado.

    Johá falava como se já tivesse uma vivido uma vida inteira e agora estava à beira da morte por velhice, quando na verdade usufruía da força e da energia que os adolescentes de 17 anos possuíam. Ele se considerava um garoto comum, cabelo encaracolado, de estatura mediana e que gostava de ler. O fato de saber ler não era exatamente o comum na Vila Orm e na maioria das vilas da região. Não existiam mais escolas e ele havia aprendido sozinho antes dos cinco anos de idade e acabou ensinando Barton também.

    Johá sempre fora muito inteligente e colecionava livros de todos os tipos, não só como fonte de conhecimento, mas também como uma porta de fuga daquela terra cinza em que viviam. Os itens mais preciosos de sua coleção eram os livros e revistas do antigo mundo, antes da dominação de Kraj. Eles vinham de lugares distantes trazidos pelas ventanias que eram constantes naquela região e ficavam jogados por toda a vila e ao redor dela, até que Johá os catasse. Ele os guardava com todo o zelo em seu pequeno quarto para um dia criar uma biblioteca que remontasse a antiga vida.

    — Tem razão, às vezes é bom lembrar como era bom ser criança – disse Barton, colocando a mochila que carregava de lado e sentando-se em uma pedra para fitar os telhados de madeira das casinhas de Orm que despontavam entre as árvores sem folhas que a cercava.

    Barton era o mais inquieto dos dois. Desde pequeno fazia incursões além dos limites da vila e arrastava o amigo com ele, naquela época eram apenas aventuras imaginárias embrenhando-se na mata que era praticamente o quintal de sua casa. Mas era algo que adorava fazer, fingir que saía para ver o mundo além de Orm com a esperança de encontrar algum lugar longe dali onde as mãos de Kraj não podiam alcançar. Isso foi há muito tempo, agora que estava perto dos dezoito anos, já entendia que o mundo todo pertencia ao Mestre das Trevas e aos sete imperadores.

    Apesar de ajudar seu avô Montes na pequena horta onde cultivam legumes, Barton não chegava a parecer um agricultor. Estava sempre de calça jeans e jaqueta cinza de capuz a qual ele gostava de manter as mangas enroladas acima do cotovelo, marcando os bíceps saltando dos braços. Seu físico atlético foi conquistado apenas pelo treinamento com espada que seu pai lhe dera antes de sumir no mundo. Claro que não tinha nenhuma arma, isso era proibido pelos Espectros, no entanto, usava qualquer galho reto o suficiente para se parecer com uma.

    Os olhos e cabelos castanhos eram herança da mãe que perdera muito cedo. Lembrar de Tália fazia ele se lembrar dos Espectros e lembrar dos Espectros trazia a memória os Áureos. Barton odiava os Espectros como qualquer outra pessoa com o mínimo de juízo, mas também não nutria grandes amores pelos Áureos. Os guardiões que agora eram tão escravos quanto os humanos. Sua mãe estava morta por causa deles.

    Depois de um longo tempo sem dizer nada, Johá olhou para o céu nublado, estava começando a escurecer.

    — Acho melhor voltarmos – disse ele se levantando e batendo a poeira da calça. – Chega de nostalgia por hoje.

    — Você tem razão. – Barton concordou. – Já deveríamos ter voltado.

    O trabalho dos dois naquele dia era ir até a Vila Sári e trocar parte da produção da horta por ferramentas que seriam usadas nas tarefas diárias de Orm. Ferramentas de qualidade como martelos, pás ou bons machados, eram objetos valiosos para os aldeões, tanto que eram trocados até por comida.

    Sári não era longe, apenas algumas horas de caminhada dando a volta na montanha e estavam lá. Era tão pequena quanto Orm e igualmente pobre, mas eles tinham ferreiros muito bons e aproveitadores também, não perdiam a chance de encarecer seus produtos quando achavam necessário.

    Johá, usando sua lábia de bom negociador, havia feito uma boa troca e agora carregava uma trouxa com serrotes e martelos para a carpintaria de seu pai. Barton não foi tão bem quanto o amigo, mas conseguira bons itens para a horta que estavam cuidadosamente guardados em sua mochila. Pegou-a do chão e acompanhou o amigo pela trilha que descia até a encosta do morro.

    — Sabe deveríamos voltar aqui amanhã e entrar naquela antiga caverna – propôs Barton. – Sempre tivemos medo dela quando vínhamos aqui.

    Johá deu uma risada achando que ele estava brincando, mas parou quando viu que Barton falava sério.

    — Nem pense nisso, cara. Conhece as histórias que a Sra. Nahin contava e ninguém pode ir lá – disse Johá com os olhos arregalados.

    — Lendas, Johá, são só lendas. Você ainda acredita em monstros que vivem no escuro? Morá só falava aquilo para nos amedrontar para não nos embrenharmos lá dentro.

    — Não é só a Sra. Nahin. Todo mundo leva essas lendas bem à sério.

    — Os únicos monstros que andam por aí são os Espectros – falou Barton com uma careta –, e nenhum deles se preocupa em ficar entocado em uma caverna.

    — Pode ser, mas eu prefiro não arriscar.

    Barton fez um muxoxo e preferiu não insistir mais. Já não era mais criança para aquele tipo de coisa, o tempo das aventuras fantásticas tinham ficado para trás.

    Orm não era tão grande quanto as outras vilas mais distantes que ostentavam grades muros para manter as feras noturnas longe. O máximo que tinham eram uma cerca de estacas de madeira, era o suficiente para um lugarzinho tão esquecido por todos onde nada acontecia.

    Os casebres eram pequenos e de teto baixo para não sofrerem muitos danos com as ventanias. As ruas estreitas de terra batida pareciam ainda mais sem cor àquela hora do dia quando os últimos raios do sol vazavam entre as nuvens pesadas.

    Céu azul era algo que os mais novos não conheciam. Desde que a Guerra Áurea teve fim o céu era sempre encoberto por densas nuvens cinzas como se uma tempestade eterna ameaçasse cair, mas nunca caía. Mais uma obra da magia de Kraj.

    Assim que entrou em Orm, Barton viu a Sra. Híji que estava sempre carregando uma galinha nos braços. Cabelo desgrenhado e descalça, ela murmurava coisas sem sentindo, tinha problemas mentais, mas era muito respeitada na vila. A Sra. Híji, acreditavam os moradores de Orm, tinha poderes premonitórios e sempre sabia quando uma grande ventania se aproximava e já tinha salvado muitas vidas espalhando gritos sobre o “vento da morte” momentos antes do mal tempo.

    Barton não era tão supersticioso quanto o resto dos moradores, mas ainda assim dividia o mesmo respeito por aquela senhora de cabelos brancos, como todos ali, ela fazia parte da grande família que era Orm.

    — Oi, Sra. Híji, como vai? – Ele a cumprimentou apenas por educação pois sabia que ela não responderia.

    — Ela parece inquieta hoje – percebeu Johá. – Você não acha?

    — A contagem é daqui há dois dias, todo mundo está meio nervoso, como em todos os meses.

    — Eu não. Já me acostumei a isso.

    — Nem parece o mesmo Johá que momentos atrás estava com medo de entrar em uma caverninha de nada. – Barton zombou.

    — Isso é diferente.

    Com o dia perto do fim, os moradores já encerravam seus afazeres para se recolherem em suas casas. O Sr. Drumond guiava seu pequeno rebanho de ovelhas de volta para o curral depois de passarem o dia pastando a grama amarela que crescia tímida ali perto; uma dona de casa recolhia as roupas da família que demoravam uma eternidade no varal para secarem com o pouco sol; alguns agricultores ainda davam uma última olhada em suas hortas, torcendo para que durassem até a época da colheita sem serem destruídas por animais durante a noite.

    Aquela era a rotina pacata da Vila Orm, pessoas comuns tentando sobreviver em um mundo onde monstros com aparência humana ditavam as regras. Barton tinha crescido naquele mundo e estava adaptado a ele, mas estaria mentindo se dissesse que não pensava em um lugar melhor para viver. Quando lia alguns dos livros velhos de Johá, tentando entender como as coisas eram antes, algo dentro dele dizia que aquilo seria possível um dia: uma praia ensolarada com pessoas felizes sorrindo na areia, como tinha visto em uma revista muito antiga.

    — O que foi, Barton? No que está pensando? – perguntou Johá, dando um peteleco na nuca do amigo.

    Ele balançou a cabeça e voltou para sua realidade sem cor. Nem tinha percebido que já estava perto da sua casa.

    — Nada de importante – disse ele.

    — Tanto faz então – Johá deu de ombros. – A gente se vê amanhã quero chegar logo em casa e tomar um bom banho.

    — Nem me fale, estou exausto. Até amanhã e tente não sonhar com os monstros da caverna – disse Barton
enquanto Johá descia a rua respondendo à provocação com o dedo do meio por cima do ombro.



    Barton entrou em casa e encontrou seu avô sentando à mesa bebericando uma xícara de chá. A lareira acabara de ser acesa e o fogo já crepitava alto, anunciando que estava pronto para mais uma noite fria em Orm.

    — Oi vovô – cumprimentou Barton, fechando a porta atrás de si. – Como você está?

    — Tirando o fato de eu estar velho e cego, posso dizer que estou bem – falou o ancião virando os olhos brancos na direção da voz de Barton. Ele havia perdido a visão há um ano, durante uma Contagem, quando um capitão Espectro o havia torturado por pura diversão. – Conseguiu todas as ferramentas?

    O rapaz tirou a mochila das costas e puxou dela os itens que tinha conseguido trocar.

    — Não todas. O ferreiro aumentou os preços de novo – falou com pesar na voz. – Desculpa, vovô.

    — Tudo bem, Barton, a culpa não é sua. Todos tentam sobreviver da maneira que podem. A do ferreiro é se aproveitar de pobres miseráveis como nós.

    Montes já passava dos 87 anos e apesar de vez ou outra soltar frases como aquela, ele ainda não tinha perdido a esperança na humanidade e nem nos Áureos, que segundo ele, ainda destronariam Kraj e recuperariam a Terra.

    — A contagem está bem próxima, não é? – lembrou Barton, mudando de assunto. – Espero que eles não machuquem ninguém dessa vez.

    — Eu também, Barton, eu também. Agora vá tomar um banho para jantarmos – falou Montes, levantando-se apoiado em um galho seco que lhe servia de bengala. – Temos uma bela sopa de legumes nos esperando na cozinha.

    Apesar de não poder enxergar, Montes gostava de ser independente. Reaprendeu a fazer de tudo dentro de casa sem precisar dos olhos. Sendo apenas ele e Barton vivendo ali, Montes não queria que o neto vivesse preocupado com ele e esquecesse de viver sua vida.

    — Vovô, você lembra quando eu e Johá escapávamos para brincar na Montanha Pedregulho? – perguntou Barton.

    — Se lembro, você me deixava louco de preocupação quando sumia.

    — Pois é, nós resolvemos desviar o caminho um pouco hoje e passamos por lá quando voltávamos de Sári.

    O ancião parou onde estava e virou-se para o neto.

    — Barton, sabe que não gosto daquele lugar. – Ele voltou a se sentar e colocou a bengala ao lado da cadeira. – Eu também costumava brincar lá quando era criança, mas depois que um de meus amigos sumiu naquela caverna nunca mais ousei voltar lá.

    — Só queríamos relembrar os velhos tempos, vovô e as histórias de monstros vivendo lá já não me assustam mais. Os únicos monstros que temos que temer são os que vem aqui todo mês para nos torturarem como animais.

    — Só fique longe daquele lugar, Barton.

    — Tudo bem, vovô, tenho outras coisas para me preocupar. Agora eu vou tomar aquele banho, porque eu estou faminto.

    Assim que Barton saiu, Montes abriu um largo sorriso. Seu neto sempre foi como o pai que refutava as superstições e crenças do local onde morava, e ele não via isso como um defeito, era bom saber que as novas gerações tinham diferentes formas de ver o mundo. Ele só esperava que aquela atitude não trouxesse problemas para ele como trouxe para Hedd.

    Infelizmente nem tudo é como se espera.

𝑨́𝒖𝒓𝒆𝒐𝒔 - 𝑪𝒂𝒎𝒊𝒏𝒉𝒐 𝑷𝒂𝒓𝒂 𝑺𝒉𝒊𝒏𝒆̂ (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora