Na sombra do vale da morte

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Rafael estava desolado.Despediu-se da vida sabendo, com toda a certeza, que aqueles eram seus últimos segundos naquela caixa.

— Rafa... Rafa...Faça amor comigo...

— Ramiro?

— É... olhe para mim... o que seu desejo fez comigo... olhe, olhe. Já viu uma amputação antes. Olhe para mim...

— Sai, sai de perto.

Ramiro rastejou até onde Rafael se encontrava sentado. Faltavam-lhe as duas pernas, aquelas que Rafael pediu à José que cortasse com o machado. O médico tentou se levantar para fugir, mas percebeu-se sem as próprias pernas.

Fechou os olhos, chorando alto e com amargura. Porém a falta da dor e o fato de respirar, indicava que estava tendo um delírio e fora do caixão. Podia respirar e estava inteiro!

— Boa noite Rafael! O que acha de termos aquela conversa? — Aquela voz mansa e grave, o acordou do pesadelo. Abriu seus olhos e viu o delegado Lúcifer sentado no chão encarando-o. — Porque o matou?

— Egoísmo.

— Muito bem. Mandou que roubassem duas criancinhas, as quais trouxe à vida, não foi? Matou-as e as entregou a esposa de seu ex amante como se fossem dela, uma e depois de um ano e meio, a outra. Deise foi muito maltratada no parto pelo que me contou, e no lugar de um filho ou uma explicação aceitável, recebeu um cadáver. Isso lhe fez infeliz e sofrer com a angústia de ter parido dois bebês mortos. Não gosta de crianças?

— Não!

— Olhe naquele cantinho... reconhece?

Rafael olhou para o canto indicado e dois bebês balbuciavam parecendo alegres, mas suas cabeças não tinham rosto e mesmo assim eles falavam:

— Titio quer brincar com a gente, venha, vamos lá onde ele está sentado.

— Titio apertou meu pescocinho até que eu não respirasse mais, não gosto dele...

— É, esse titio é muito mal, mamãe chora...

— A minha mamãe também chora e meu papai a abandonou...

— Ahhh meu Deus, o que eles são?

— O que você acha? 

— Olha, escute aqui, eu tenho o direito de ser preso, julgado e condenado ou até absolvido. Meu pai é um homem influente logo vai saber disso.

— Eu não me sinto ameaçado, acredite. Porque as pessoas que fazem o mal não aceitam quando ele retorna? Dizem até que não cabe a mim fazer a justiça, pois eu não estou autorizado a julgar. Nem meu pai, nem Betânia e nem a Deise. Ninguém pode julga-o pelo mal que causou a várias pessoas. Nem você tinha o direito de julgar que a vida de um transplantado rico e poderoso era mais valiosa que a vida de um pobre coitado. Entende o quão irritante é isso?

— Vai me matar?

— Matar seu corpo? Não. Matar a carne, causa nada além de dor física, apesar de você precisar dela, conhece-la vai te transformar e fazer você entender o que as pessoas sentem. Arrepende-se de algo?

— Vá se foder!

........

Hercílio corria por entre casas, mato, ruas desertas e a sarjeta. Nunca seria encontrado naquela tubulação estreita onde resolveu que se enfiaria. Seu corpo entrou espremido naquela tubo e na descida, um ferro que estava retorcido lhe rasgou o couro da perna do joelho até coxa. Caiu dentro do esgoto que corria para a área de tratamento. Os piores fedores matavam o pouco oxigênio e a tontura ameaçava derrubá-lo. Se ali caísse morreria rapidamente... Era preferível. Morrer afogado na bosta, fora seu último pensamento antes de afundar-se e se aceitar a entrada daquela podridão em si, juntamente com a asfixia que o levou de encontro ao fim de sua vida.

O Papai UrsoOnde histórias criam vida. Descubra agora