Presságio

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Inara.

Nem bem saiu e foi segura pelo braço novamente, segurou sua ira, engoliu seu orgulho e se deixou arrastar pelo braço por um homem estranho. Quando entraram na casa do líder ela começou a se preocupar, a conversa com Argo não podia ser levianamente esquecida, ainda assim ela não tinha nada a fazer senão cultivar um pouco de paciência, quando passaram pela sala em que ela esteve há um quarto de hora antes Inara gemeu dramaticamente mostrando medo, o homem não pareceu ligar para a camponesa medrosa que ele arrastava e abriu uma porta pesada. Desceram uma escadaria íngreme e Inara sentiu a liberdade ficar cada vez mais distante.

A porta que o ladrão parou era de madeira grossa e tinha uma janelinha quadrada no meio, sem reagir, Inara tropeçou para dentro quando a mão grande do homem empurrou suas costas.

Se manteve em pé, quieta e de cabeça baixa e aguardou o barulho do trinco de ferro a selar ali dentro. Quando ouviu os passos da bota na pedra já distante, Inara tirou a faca de dentro do corpete, ficou desanimada e soltou um suspiro quando viu o quanto era pequena.

A lâmina não era longa o suficiente para atravessar um coração, no máximo a ponta alcançaria o órgão causando um ferimento leve. Porém era esmeradamente afiada e cortaria uma garganta como se fosse manteiga.

Ela tinha roubado de Argo no meio da luta e ele nem percebeu, mas agora seu pequeno furto não parecia que a ajudaria muito ali dentro, por fim voltou a guardá-la dentro do corpete e analisou sua cela.

Tinha um jarro de barro, uma bacia e um copo do mesmo material em um canto no chão. A cama era de madeira, o colchão de palha. No outro canto tinha uma latrina e uma bacia de estanho.

As paredes de pedra continham fungos de umidade. Inara deitou de bruços e passou a mão devagar pelo piso embaixo da cama. Encontrou musgos e alguns insetos.

Levantou, colocou as mãos na cintura e sorriu pesando todas as possiblidades. Ela tinha uma pequena faca, um quarto mofado e algumas vasilhas, então nem tudo estava perdido. Se o velho já estava doente, ela poderia somente com o que tinha em mãos garantir que ele ficasse ainda pior se a tocasse.

Pegou o copo de barro, retirou novamente a pequena faca do corpete e começou a raspar a parede tranquilamente.

****

Davi

Ana apertava sua mão com força. Davi não se importava de ter os dedos esmagados com o aperto. Se isso confortasse Ana, ele ficaria feliz mesmo que isso o tornasse um inválido.

— Será que Inara vai conseguir Davi?

Era quase como um cumprimento, todos os dias Ana fazia a mesma pergunta, era como se ela precisasse da resposta de Davi para poder respirar mais um dia. Ele sabia disso e novamente respondeu com paciência como fazia todos os dias durante esses três meses que estavam esperando notícias.

— Inara é destemida Ana. Acho que não será assim tão rápido, mas ela voltará com o dragão do equilíbrio. Acredito nela, ela não vai desistir, só irá voltar quando encontrá-lo e trará Lisse e Ézio de volta.

Ana assentiu mais confiante, os olhos marejados encaravam Lisse que parecia apenas dormir flutuando no ar.

Ézio ao seu lado estava com o semblante sereno, nem parecia que tinha se sacrificado, mesmo sabendo que tinha possibilidade da magia não dar certo, mesmo sabendo que perderia o amor de Lisse, Ézio ainda assim entregou a magia do dragão que estava em seu sangue aos Elementais, apenas para manter Lisse viva.

A ideia inicial era que os dois levantassem dali com o sentimento tão forte entre eles completamente apagado de suas memórias, mas no fim das contas, o giroscópio não encontrou o equilíbrio necessário e nenhum dos dois levantou, mesmo depois de meses continuavam ali flutuando no ar como se dormissem.

Davi sentiu o nariz arder, mas respirou fundo e não se permitiu chorar, tinha que ser forte por Ana.

Era uma situação complicada para os dois. Lisse e Ézio faziam parte da família de Davi, ele os amava assim como ele amava a rainha Bianca, sua irmãzinha, porém a rainha ele sabia que estava bem, já Ana, não tinha mais ninguém agora a não ser ele.

Ela tinha Lisse e Inara somente, suas irmãs mais velhas e assim como Davi, ela estava só, ela estava perdida em angústia.

Em um gesto protetor Davi puxou Ana para ele, a abraçou e encostou a bochecha em sua cabeça.

Ana descansou a cabeça em seu peito e abraçados, continuaram a olhar o casal inerte e flutuando no ar.

Davi se agarrava aos poucos que tinha sobrado dos seus, eles não estavam verdadeiramente sós. Tinham Délia, capitão Alaor, mestre domador e a rainha Bianca por eles e ainda seus amados dragões, seus companheiros alados. Embora Solar e Audaz estivessem na maioria do tempo, tristes e abatidos.

Eles sentiam a dor de Murdaz que desde que perdeu Lisse, se isolou em uma caverna no campo, também sentiam a dor de Platinum que desde que perdeu Ézio tinha voltado ao barracão, se recolhido no mesmo lugar que ficou por anos esperando, e desde que voltou a reclusão, nada mais o fez sair dali.

Davi e Ana ainda faziam a ronda, ainda cumpriam suas tarefas e obrigações com o reino. Mas não existia mais a alegria de sempre no campo dos dragões.

Até mesmo o mestre domador parecia ter sucumbido a idade. Tinha perdido o viço e a alegria que sempre o destacou e agora na maioria do tempo, estava ocupado em infindáveis reuniões do conselho.

— Venha Ana. Você precisa descansar, hoje foi um dia longo.

Eles tinham feito a ronda desde madrugada, o sol já estava se pondo. Ana parecia mesmo exausta. Davi tomado de sentimentos encostou seus lábios de leve nos dela, sentiu o conforto apenas com o toque singelo e morno da carne macia. Era todo o progresso que ele tinha conseguido com ela, ainda assim o confortava.

Ana sorriu para ele agradecida. — Tem tanta paciência comigo Davi, que nem sei o que seria de mim sem você, sei que poderia lhe oferecer mais, que já faz algum tempo que espera, mas eu...

Davi colocou um dedo nos lábios de Ana a silenciando.

— Não precisa falar nada Ana. Amor é altruísta, eu a amo, e só de saber que posso finalmente falar sobre isso sem querer me jogar de Audaz lá do alto para ter uma rápida morte somente de vergonha, eu fico feliz.

Davi ficou contente quando Ana riu, já que ultimamente ver um sorriso dela era um acontecimento raro.

— Eu amo você Davi, mais do que eu demonstro, não sou nada carinhosa e sou distraída, nem um beijo de verdade aconteceu ente a gente ainda, mas meu coração está cheio de angústia e não consigo me entregar a nada senão a espera pelas minhas irmãs de volta.

Davi sorriu, ela sempre falava isso o olhando com verdadeiro pavor que ele um dia perdesse a paciência, mas ela não o conhecia tão bem para supor que ele não esperaria por ela.

— Eu sei Ana, paciência sempre foi meu dom mais forte, acho que na verdade é meu único dom. — Ele levantou os ombros como se não se importasse. — E outra, somos jovens, temos tempo e agora nem teria clima para isso.

Davi sorriu e esperou uma resposta. Ultimamente estava fazendo de tudo para deixar Ana confortável. Sua devoção lhe tinha rendido pequenos progressos, mas ele adorava esse pouco que recebia ainda assim.

Os olhos de Ana brilharam de amor. — Eu não mereço você Davi. Mas sou egoísta para pedir que espere por mim. Um dia isso tudo acaba.

Davi não respondeu, nessa parte ele nunca falava nada, sua timidez ainda era forte para ele conseguir enumerar os vários motivos que o fazia esperar por ela.

De mãos dadas os dois saíram daquele cômodo agora conhecido e chamado por todos do reino como a Sala da espera.

Ana subiu na asa de Solar e se ajeitou em suas costas quando ele a levantou. Davi fez o mesmo em Audaz e com um impulso quase ensaiado os dois dragões, amarelo e verde subiram no ar deixando uma lufada de vento que apagou as lamparinas do grande pátio daquela torre.

Davi olhou para trás e viu a porta da Sala de espera imersa na escuridão.

Sentiu um mau presságio com aquela visão. Pensou em Inara e por um momento seu coração se espremeu até doer em seu peito. Ela estava em perigo, ele sentia isso.

Sanoar 3- Herança Cósmica- (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora