Desligou o chuveiro e soltou o sabonete no suporte preso à parede. Pisou sobre o tapete empoeirado. As gotas que caíam de seu corpo deixavam marcas gordas no chão. Abriu o armário embutido no espelho, como fizera milhares de vezes antes, e encontrou um pente azul de plástico. Passou os dentes no cabelo, desatando à força os nós que haviam se formado. Estava mais velho e mais magro do se lembrava. Muito mais magro. Olhando-se no espelho, conseguia enxergar os contornos de sua caveira, os olhos fundos, as marcas do maxilar salientes apesar da barba escura, onde o tempo ainda não havia cravado suas garras inclementes.
Penteou os cabelos para trás e segurou-os em um rabo de cavalo. Os fios, finos e fugidios, não eram suficientes para esconder seu couro cabeludo por completo. "Preciso dar um jeito nisso" pensou.
Saiu do banheiro ainda pingando e voltou ao quarto. Abriu um guarda roupa e retirou uma toalha felpuda, cheirando guardado, passou-a pelo corpo e sentou na cama, deixando uma mancha de umidade no colchão. Ficou contemplando o braço dormente, deixando sua mente vagar em busca de respostas.
Levantou-se e, com dificuldade, vestiu cueca, uma calça creme e uma camisa de manga curta, sem abotoá-la e enfiou um sapato preto nos pés. Deixou a toalha em cima da cama, negligenciada.
Foi até a cozinha, passando por uma sala, cujas paredes eram revistas por estantes e livros e onde um computador com tela de tubo amarelada jazia coberto por uma proteção de plástico e muita poeira. Ficou parado olhando para a máquina, incomodado pela sensação de haver esquecido de algo. Ligou-a e permaneceu ao lado dela, esperando o carregamento do sistema que se deu em uma cacofonia de bipes e do ventilador interno sendo ativado a plena força. A tela finalmente mostrou um logo com um espaço para inserir login e senha. Sabia seu login, mas a senha havia desaparecido de sua mente. Tentou várias até desistir, cedendo aos apelos de seu estômago vazio.
Foi à cozinha e verificou os armários. Não havia nada ali, além de armadilhas para baratas e um produto para evitar mofo. Do outro lado do cômodo, a geladeira ainda estava ligada e, dentro dela, esquecida no canto do refrigerador, encontrou uma lasanha.
Colocou a comida no microondas e digitou o tempo, iniciando-o em seguida. O aparelho rugiu em protesto, mas o som logo em seguida se tornou um zumbido constante que se espalhou pelo apartamento. Nos quatorze minutos restantes, o professor passou um pano com desinfetante na mesa e lavou prato, garfo e faca na pia.
Sentou-se com a massa fumegante diante de seus olhos, incapaz de relembrar sua última refeição. O odor da lasanha e sua aparência encheram-lhe a boca de saliva. A faca penetrou camada por camada da iguaria, transbordando um queijo branco e cremoso. Com o garfo, levantou o pedaço cortado, revelando camadas de massa intercaladas com presunto e carne moída. O molho de tomate vermelho-alaranjado misturava-se com o queijo e pingou em gotas gordurosas e abundantes sobre a mesa. Da mesma forma, um fio longo e generoso de mussarela esticou-se e se espalhou pela superfície de madeira.
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O Homem de seus Sonhos (2017)
General FictionEm 2010, eu escrevi dois contos para uma antologia em homenagem a Lovecraft, a qual infelizmente acabou não sendo publicada. Após sete anos, reescrevi o primeiro deles, desta vez sem o limite de caracteres exigido pela editora.