O trajeto todo levou quase três horas. A casa de Ângela e Augusto ficava do outro lado da cidade e o trânsito, mesmo aquela hora, estava inclemente. Houve tempo de sobra para que ele contasse do pesadelo e de como acordara em sua cama, sem memória recente e com a cabeça latejando de uma forma que nunca havia sentido antes.
Quando voltaram para o apartamento, Roberto estava melancólico e calado. Em suas mãos, havia um embrulho grande. Seus olhos estavam avermelhados de lágrimas que ele foi incapaz de conter. Em silêncio, aproximou-se da mesa onde se dedicara à seus maiores projetos e depositou sua carga sobre ela. Abrindo-a, viu uma porção de livros, cadernos e fotografias. Por fim, retirou de dentro um envelope de papel pardo e o levou até o sofá, onde se sentou.
Roberto abriu o envelope e retirou de dentro um jornal amarelado. Estava escrito em turco, uma língua que não dominava. Não precisava ler a manchete para entender o que estava escrito. Na página principal, havia uma foto em preto e branco. Era um homem, calvo, de altura mediana e um bigode negro e grosso, cujo corpo estava coberto com um lençol e cercado por policiais. O rosto do homem estava deformado pelo que parecia um grito de dor. Mesmo na baixa resolução da fotografia, era possível perceber que as órbitas oculares estavam vazias. Nada disso era suficiente para impedir que o professor reconhecesse seu assistente.
Laura se aproximou e o tocou nos ombros. Queria oferecer-lhe ajuda, mas sabia que seria enxotada novamente.
-Vou ao mercado- ela disse com o coração na mão, deixando-o sozinho.
Roberto voltou a caixa e revirou os tomos ali contidos. Livros pouco ortodoxos, criticados pelos homens de ciência da época. Eram quase todos os que haviam desaparecido de sua estante. Por fim, pegou seu diário e sentou-se na mesa do computador.
Debruçou-se sobre o livro e leu a noite toda. A mulher voltou, arrumou-lhe o quarto, cozinhou e esperou no sofá, mas ele parecia não ter notado sua presença em momento algum. Por fim, ela dormiu, os sapatos caídos dos pés, o cotovelo encobrindo a face branca, os cabelos desarrumados sobre seu braço.
Quando o sol surgiu no horizonte, inconveniente e atrevido, encontrou Roberto com o rosto projetado e marcado por olheiras profundas. As memórias haviam regressado à sua cabeça. Esteve na Turquia, onde encontrou o culto dos Antigos, e mais além. O calendário maia marcava a mudança de uma Era e não o fim do Mundo, marcava o regresso de Deus e o fim do império do Homem.
Yog Sothoth.
O nome e a promessa.
Sentiu suas presas fincando-se fundo em seu braço. Sentiu o calor e o frio. O cheiro repugnante de Sua carcaça abençoada, o cheiro que estava dentro de si agora. A febre o consumiu e o deixou mole. As memórias doíam como lâminas, retalhando-o por inteiro.
Augusto havia sido a chave. Ele havia colaborado para aquela morte e para muitas outras. Sua mente foi invadida pelo choro de crianças. Suas mãos estavam cobertas de sangue. Ouvia gritos, ouvia vozes, palavras em um idioma proibido que agora voltava à sua consciência, formulando receitas mágickas, informações perdidas, conhecimentos ocultos e rituais execráveis. Sua cabeça vibrava como se uma marreta o estivesse golpeando. Perdido em sua loucura, não ouviu o ferrolho sendo destrancado. Ouvia apenas o cântico milenar, ecoando nas paredes do tempo, que reproduzia a dança milenar de planetas longínquos e ignorados pela raça humana. Sua pele ardia com o calor de um sol moribundo. Seu braço estava vermelho e inchado e pingava um suor acre e espesso. Seu corpo todo tremia e a figura distorcida de seu rosto se refletia na tela negra do monitor à sua frente.
Um corpo negro surgiu no reflexo, atrás de si. Ele não teve forças para se virar. Viu uma espada encurvada surgindo e ouviu uma voz grave que lhe arrepiou os pelos do corpo todo. Severo foi o julgamento que a figura pronunciou e ela mesma cumpriu.
A lâmina brilhante desenhou um círculo no ar e os pecados do professor espalharam sua vida pelo chão.
Um grito feminino, de altura lancinante, acordou os vizinhos naquela manhã.
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O Homem de seus Sonhos (2017)
General FictionEm 2010, eu escrevi dois contos para uma antologia em homenagem a Lovecraft, a qual infelizmente acabou não sendo publicada. Após sete anos, reescrevi o primeiro deles, desta vez sem o limite de caracteres exigido pela editora.