Capítulo sem título 8

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Procurou o número de seu antigo assistente, um dedicado aluno que havia permanecido ao seu lado ao longo da pesquisas na universidade. Augusto era um homem leal e muito inteligente, uma espécie de Sancho, ele pensou por um instante, mas logo rejeitou a ideia. Não quis assumir o manto do fidalgo que se perdera nos dédalos da própria loucura.

A agenda tinha uma encadernação em couro, um presente que ganhou décadas atrás quando assumira a cátedra na universidade. Suas folhas estavam amareladas pelo tempo e muitas delas haviam sido arrancadas. Ele não sabia se aquela agressão havia sido sua ou por alguma mão criminosa, que invadira a santidade de seu lar. Talvez aquilo tivesse sido obra de sua ex-mulher ou de alguma amante ciumenta, pois os dados de Augusto continuavam ali. Observando o nome do companheiro, teve uma sensação amarga e sua cabeça pareceu tomada por uma espécie de vertigem que o paralisou por alguns instantes. Ele se apoiou na escrivaninha enquanto lutava contra a tontura. Diante de si, havia um espelho e seu reflexo se perdia conforme sua visão obscurecia e voltava.

O rosto no espelho era um rosto deformado, a testa muito larga, os olhos minúsculos, a boca enorme com dentes tortos e amarelados, o nariz adunco quase caricato, as orelhas pontiagudas e desproporcionais. Em meio às trevas do aturdimento, aquela face monstruosa surgia e desaparecia, um sorriso zombeteiro nos lábios distorcidos.

Ao cabo de um tempo que ele não foi capaz de medir, a tontura passou. Apesar disto, o professor continuou apoiado na cômoda, respirando em lufadas generosas de seus pulmões, receoso de que a crise recomeçasse. Seus olhos evitaram o espelho, mas finalmente o encarou e viu seu próprio rosto, encharcado de suor e muito pálido.

Tomou coragem e foi até o telefone, uma antiguidade, preto, de ferro, pesado e frio ao toque. Discou o número anotado em sua agenda seguido pela indicação de "Residência". Enquanto aguardava os toques curtos da ligação, seus dedos tamborilavam a mesa de madeira escura, cujo cheiro ainda rescendia pela casa. Apesar da inquietação, sentia-se abraçado pelo ambiente ao seu redor.

Cada toque duravauma vida. O espaço entre eles durava uma eternidade. A cada segundo, as batidas de seu coração eram sentidas nas veias em suas têmporas, em seu pescoço e dentro dos ouvidos.

-Oi- falou uma voz sonolenta.

O professor se surpreendeu com a voz conhecida, pois já havia se resignado com a não ser atendido.

-Ângela- ele disse após se recuperar- Preciso falar com o Augusto, é urgente.

-Que tipo de brincadeira é essa...são cinco da manhã...

-É o Roberto, Ângela. Preciso falar com Augusto imediatamente.

A voz do outro lado desapareceu por alguns instantes, deixando um silêncio pesado como chumbo nos ouvidos do professor. Quando regressou, o sono havia desaparecido, dando lugar a uma aspereza colérica, prestes a irromper em uma erupção de raiva e impropérios.

-Não é possível que tenha coragem de me ligar – ela disse, de forma lenta e calma- Depois de tanto tempo...que tipo de merda você tem na cabeça?

O tom calmo desapareceu, dando lugar a gritos e xingamentos. O professor afastou o alto-falante do ouvido e aguardou que Ângela recuperasse a razão. Quando a voz dela cessou, porém, foi logo substituída pelos toques contínuos que põe fim às chamadas.

Roberto levou a mão esquerda à testa, iniciando uma massagem lenta com as pontas dos dedos, tentando entender o que diabos havia acontecido. Até onde se lembrava, as relações com a mulher de Augusto sempre haviam sido cordiais e muito educadas. Apanhou a agenda e procurou cuidadosamente por alguma anotação que indicasse um número de celular de seu assistente. Não encontrou nenhum. 

O Homem de seus Sonhos (2017)Where stories live. Discover now