A batalha contra a morte andante

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Se eu pudesse imaginar passo a passo como essa investida poderia ser desastrosa em todos os sentidos, não teria chegado perto de sequer arranhar a realidade dos acontecimentos que decorreram.

Diferente dos campos e cerrados que percorremos até então, com fácil movimentação em solo firme e seco, essa região era densamente tomada por uma mata fechada e terreno lodoso. Quanto mais próximos chegavamos da terra amaldiçoada, mais alto subia o nível de água sob nossos pés, chegando a altura da cintura em seus trechos mais alagadiços.

O odor durante essa travessia era intragável. Uma fragrância pútrida exalava dessa água lodosa onde se via restos de corpos aquáticos indistinguíveis pelo seu avançado estado de decomposição, gerando uma miasma contagiosa que sozinha amaldiçoaria toda tripulação por sua pestilência degenerada, mas aos sertanejos apenas o ódio aos nativos importava.

Rodeado por esse lodaçal mórbido pudemos avistar uma pequena porção de terra firme que abrigava pequenos alojamentos dos misteriosos nativos. Ao invés de planejar seguramente um ataque do lado de fora, todos os sertanejos decidiram avançar cegamente de forma desordenada. Dando de cara apenas com ocas vazias e cadáveres devorados que cobriam todo chão, além do silêncio ensurdecedor de morte no ar.

Todo o suspense daquele momento durou alguns minutos, mas pareceram horas de sofrimento. Todos estavam com armas empunhadas, prendendo sua respiração e contando atenciosamente cada passo dado. Os cadáveres aos nossos pés alimentavam nossa sensação de insegurança, qualquer ação brusca terminaria com alvejadas da própria bandeira, por isso seguiam agora cautelosamente.

O mísero suspiro de um animal ao longe poderia ser facilmente notado, mas o que aterrorizava todos é que justamente nada podia ser ouvido. Nem um assovio de pássaro, nem o vento batendo nas folhas, nem da água correndo no riacho. Era como se a própria natureza soubesse que algo andava terrivelmente errado.

O que irei descrever a seguir, provavelmente soará como loucura. Eu mesmo duvidaria do relato se eu próprio não tivesse sobrevivido ao horror. As misteriosamente carcaças que estavam jogadas e demos por mortas, se levantaram repentinamente como se um encanto macabro as tivesse conjurado, e começaram a agarrar e devorar os bandeirantes.

Os que conseguiam reagir ao susto acabaram atirando uns nos outros, outros puxavam seus facões e desferiram pesados golpes nos mortos ambulantes que recebiam as punhaladas como uma temível indiferença. A força dessas criaturas era descomunal para um corpo humano, e ainda sim sua estrutura corporal era completamente defasada pela putrefação da carne morta. Apenas a maldade carregava força nesses corpos e perante esta, pouco a pouco a população da bandeira foi caindo.

Percebendo rapidamente que estávamos numa luta perdida, eu e um pequeno grupo de sensatos partimos em retirada da vila, correndo como podia pelo chão lodoso que nos cobria a cintura. Cada movimento dentro desse lamaçal era um esforço cansativo que somente o zelo por nossas vidas nos empurrava. Essa explosão de força foi ainda maior quando demos conta que outras criaturas brotaram na água e nos perseguiam.

Vi poucos companheiros de bandeira sendo agarrados, alguns bondosamente afogados e outros sem tanta sorte sendo dilacerados com suas vísceras em contato direto com a lama podre. Tive uma incontável sorte de sobreviver a esse pesadelo apenas com um braço arranhado, o contrário do qual uso para escrever.

Eu não sei se outros sobreviveram, não sei se por ter fugido da batalha serei tratado como um traidor, só pensei em correr o mais longe dessa tribo e nunca mais voltar. Avisar meus conterrâneos dos perigos que a mata esconde se tornaria meu único objetivo. Estava satisfeito de levar comigo meu diário, detalhando tudo o que deu errado nessa expedição.

A Pestilência  Nefasta da Tribo Ka'ynguaOnde histórias criam vida. Descubra agora