O dia começou mal. Lucrécia acordou atrasada. O seu despertador que quase sempre funcionava bem, naquele dia resolvera não disparar.
Ela, quando começou a trabalhar, sempre dormia sua noite de sono de modo fragmentada, acordando de tempos em tempos para conferir o aparelho. Com o passar do tempo, ela foi ganhando confiança naquele dispositivo, mas agora, ali de pé, desconcertada, cabelos despenteados em altas sete e quarenta da manhã, ela amaldiçoou o despertador.
Sempre acordava antes do marido. Ele tinha um cargo alto na empresa na qual trabalhava, e podia se dar ao luxo de algumas mordomias.
Saindo apressada, ela nem mesmo pode se dar ao seu habitual ato cerimonial de encarar seu marido dormindo na cama um pouco antes de sair, por fim, a caminho do trabalho.
Ela lhe dava um beijo nas bochechas salientes e frias - que esfriavam no decorrer da noite, pela economia de energia, que seu corpo fazia no repouso.
Dirigindo apressada para o trabalho foi-se lembrando de Juliano e do beijo que não lhe dera.
Gostava muito dele.
Pensava consigo mesmo que era uma felizarda por ter um companheiro tão gentil, bem educado. Também se permitia o gosto de sentimentos menos nobres ao constatar no seu lado mais animalesco, mas igualmente natural, que adorava a aparência física de Juliano.
Seus cabelos castanhos escuros caiam bem com sua pele alva. Juliano tinha, também, duas covinhas que se protuberavam toda vez que uma emoção mais intensa vinha à tona.
Nesses devaneios de mulher normal e apaixonada, escondia-se uma nuvem negra que pairava nessa simples felicidade, e que ameaçava chover e molhar essa alegria.
Já fazia dois anos que eles tentavam engravidar.
Cada tentativa frustrada abria espaço para uma postura fingida de "Tudo bem, na próxima vamos conseguir".
Só que esse "conseguir" nunca chegava.
Uma amiga de Lucrécia, Valentina, havia sugerido que ela fizesse uma simpatia para os Deuses Antigos.
Era engraçada tal sugestão. Lucrécia era cristã, frequentava a igreja, lia a bíblia; acreditava. Mas de certo modo vendo sua amiga Valentina falar tão entusiasticamente sobre o poder dos Deuses, achou graça nesta bizarrice tão típica de sua amiga.
"De certa maneira os santos cristãos também tomam para si causas específicas", pensou Lucrécia. Santo Antônio, casamenteiro, São José, trabalhador, e a lista ia se seguindo, diversificando-se como se proliferando na mesma proporção dos descendentes das figuras bíblicas.
Lucrécia simpatizava com conhecimento popular e reconhecia na tradição religiosa, o acúmulo de crenças, fé e criatividade de vários povos, que juntos se tornavam plurais no intuito de universalizar a fé.
Seu pensamento ia se arrastando para todo o canto dos conhecimentos e reflexões inúteis.
O impasse da manhã acabou se tornando brevemente esquecido e por fim, já prestes a estacionar o carro na vaga da escola na qual lecionava, começou a rir das esquisitices de Valentina.
"Como mesma fui me lembrar disto?"
Embora Lucrécia não conseguisse juntar os pontos, havia sido o beijo que não dera em Juliano, pela manhã, que lhe disparou os pensamentos nas divagações que vinha lhe confirmar os motivos de amar o marido, e demonstrar no seu modesto beijo esse sentimento.
O peso do contraste vinha novamente pesar-lhe a cabeça.
Ainda que amasse imensamente Juliano ele era a sua lembrança fixa do seu sonho irrealizado de gravidez. Não era culpa de ninguém, mas era como se a presença do marido fosse um gatilho para aquela chama inextinguível de insatisfação.
"Da próxima vez daria o beijo de Bom-Dia em Juliano, mesmo que acordasse às oito horas da manhã".
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Assunto de Crianças
RomanceUm casal harmônico. Ele engenheiro, ela professora. Tudo flui, menos o pequeno obstáculo da esterilidade do casal. Entre conversas e pensares, Lucrécia e Juliano começam uma caminhada na direção da adoção, mas as coisas não serão tão simples assim...