Uma tarde doce

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Lourdes não andava de carro com frequência, por isto o conforto daquele EcoSport a confundia. O ar de dentro do carro era sublimado pelo vapor quente que saia de uma de suas ventilações, de modo que cada baforada de sua respiração encontrava respaldo na atmosfera quente que lhe acalentava o corpo pequeno.

Lucrécia havia cuidadosamente afivelado o cinto em sua cintura fina, esticando o objeto de plástico e couro nas curvaturas sutis do seu corpo de criança. Aquele cuidado materno era estranho a Lourdes. Não que ela gostasse de menosprezar os esforços sinceros que sua mãe lhe fazia, com o intuito de cuidá-la. Somente acontecia que as atitudes espontâneas de Maria, careciam do toque gracioso da sensibilidade natural e apurada que Lucrécia possuía.

Juliano perguntou:

_Está tudo certo aí no banco de trás Lourdes?

Pelo espelho retrovisor Juliano visualizou o balanço de cabeça afirmativo da garota. Deu partida no carro, cujo barulho do motor era tão delicado quanto suas decorações finas de material caro.

Eles haviam combinado uma tarde em Campos de Jordão. O tempo frio criava uma atmosfera íntima, na qual os corpos pareciam se complementar para preencher o vazio criado pela estação melancólica.

No rádio do carro, um pendrive estava conectado. Lucrécia havia perguntado a mãe da menina, qual música poderia colocar para agradar os ouvidos infantis de Lourdes.

Está pergunta deixou Maria aturdida. Sua filha simplesmente não escutava música. Esta resposta direta e seca de Maria abalou por intervalos de tempo curto o coração de Lucrécia. Ela sentiu o peso da culpa.

Para ela, era-lhe natural a presença da música em sua vida, mas ela se descuidou, visto a falta de consciência sobre a real situação de precariedade da vida de Maria. Aparelhos de música, amparado pelas facilidades de um pendrive não eram recursos disponíveis a todos.

Ela divagou em espaços curtos de tempo, voltando ao contato direto com Maria a tempo de não ser percebida em suas reflexões.

Mesmo a arte popular era seleta. Conforme ela ia se aprofundando entre as camadas mais desprovidas da população, percebia que a materialização de talentos se tornava mais rara, à medida, que os incentivos se tornavam menos frequente.

Havia às vezes em que os olhos eram agraciados pela beleza da expressão dos gravites, nas ruas amareladas e sem vida.

Nesta digressão de ideias concluiu que talvez fosse melhor não dar vasão as sensibilidades da alma, cuja natureza frágil necessitava sempre de reparos de carinho para não se poluir visto a maneira pura de encarar o mundo.

_Entendi Maria, nossa, é que eu gosto tanto de música e acabo achando que todos vão ser bobões assim como eu, por este tipo de hobby – e ela sorriu desconcertada. Limpou as sobras de seu sorriso frouxo..

Nestas reflexões o carro ia seguindo pela estrada rumo aos picos altos da cidade para qual se dirigiam. A música que tocava era Dilermano Reis: queria que Lourdes compartilhasse um pouco da paz que estas melodias lhe davam.

No manuseio peculiar do músico sobre o seu instrumento, reconhecia em cada nota um pouco de um paraíso gratuito na Terra. Deixou a música bem baixa, para que assim, a atmosfera angelical ganhasse mais contornos de sutileza.

Lourdes ia olhando para a paisagem, percorrendo com a vista a estrada estreita que ia seguindo reta, linear, algumas vezes com curvas. Como se a sinfonia das ruas fossem aparecendo conforme as notas regulares da música de Dilermano iam sendo incorporadas a agilidade de sua genialidade.

Passaram aquela tarde na cidade de Campos do Jordão. Lourdes estava vestida com um casaco marrom claro, quase cor bege, com um cachecol vermelho, cheio de retalhos decorativos que lhe caia pela extensão de sua altura baixa: presente de Lucrécia.

A menina fascinava-se pela quantidade de flores amarelas que iam se espalhando pelos corredores abertos da cidade.

_Como são bonitas essas flores moça.

_Sim, elas são lindas – sorriu Lucrécia. E com suas mãos alvas retirou uma flor do seu ramo verde – Tenho certeza que ninguém reclamará de levarmos esta flor conosco – dizendo isto, retirou uma mecha do cabelo de Lourdes de trás de sua orelha, e pousou a flor no local agora descortinado.

O calor do gesto, aliado à proximidade do conforto daquele contato íntimo, estremeceu o corpo da garota. Como se o contato da pele servisse como justificativa a mudança abrupta de temperatura que ela sentia em sua pele.

Aquela mansidão de gestos e proximidade foi, à proporção que se tornavam mais frequentes, produzindo menos choque em Lourdes. De certa maneira, com a regularidade do carinho, o costume foi transformando-se lentamente em familiaridade. Os toques gentis de Lucrécia iam cada vez menos, produzindo estranheza para aquela alma bruta de atitudes de afeição.

Passaram a tarde a conhecer os pontos turísticos da cidade.

O sol que já era fraco começou a se esconder atrás de uma nuvem limpa, que não indicava maus tempos, somete indicava a sua graça de se manhar , escondendo dos olhos dos mortais os seus raios calorosos de vida.

O intervalo do sol pediu uma pausa para o café.

Sentados à mesa de um bar, Lourdes atrapalhou-se pelas letras confusas e não compreensíveis, que se acompanhavam de números no cardápio.

Juliano encostou seu dedo polegar ao lado dos nomes de cada opção, e foi lendo para a garota, o que cada conjunto de palavras decodificava - uma apresentação de comida deliciosa.

_Nós gostamos de pedir pão de queijo Lourdes, você já comeu? – disse Lucrécia.

_Não, eu não sei o que é.

_Posso pedir então para você experimentar?

Mais uma balançada ansiosa de cabeça.

Enquanto a refeição não chegava Lourdes foi se constrangendo a demonstração de interesse do casal em relação a ela. Ninguém costumava lhe perguntar as vontades; ninguém oferecia comidas diferentes; ninguém que lia nomes que ela não podia compreender, por ser pequena, ou mesmo desamparada, não conhecendo cardápios de restaurantes.

Mas os afagos do casal foram-na desinibindo, mesmo diante de emoções tão intensas e abruptas.

O tempo passou tão rápido, que logo mais a comida chegou.

Lourdes gostou particularmente do chocolate quente, pois ao mesmo tempo, que a bebida era açucarada, possuía uma textura cremosa que lhe cocegava a língua.

Ela só não gostou mais da refeição do que havia gostado de passar aquela tarde com aquele novo par de amigos.

O chocolate quente e o pão de queijo dourado só serviam como reforços de demonstrações simples, mas sucintas e claras de amizade.

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