Conhecendo o Grupo de Apoio

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Juliano digeria a refeição aos trancos, tentando glutinar a própria insatisfação que ficara presa em sua garganta. Ele sempre se orgulhou de ser um desses caras achados entre milhões, que conservam o respeito às mulheres e conseguem ultrapassar os limites de sua criação, que lhes envolta em paradigmas machistas.

Mas era impossível negar a si próprio o incômodo do conhecimento de sua esterilidade. Isto apenas não era algo que ele considerava possível, até receber o prognóstico médico. Sentia-se ridículo agora. Quando ele e a mulher tentavam incansavelmente engravidar, ele havia cogitado a hipótese de que Lucrécia fosse estéril. Mas nunca ele.

Também lhe era inevitável inundar-se de lágrimas revoltosas contra um Deus, que ele sabia que o assistia. "Enquanto alguns homens que são verdadeiros esboços da irresponsabilidade semeiam no ventre de mulheres os germes de sua hereditariedade, ele estava condenado a não poder frutificar sua amada mulher".

Ele sempre havia sido pró-feminista e tudo mais, mas internamente quando olhava para os camaradas mais chegados do trabalho, e eles balançavam suas cabeças em uma cordialidade cínica, ele sabia que por dentro seus amigos diziam "Um homem e não consegue engravidar a esposa".

A esse pensamento puniu-se com uma batida brusca na própria cabeça.

Seu temperamento era normalmente moderado e passivo. Tentou se lembrar disso para colocar-se novamente nos trilhos calmos da aceitação.

De certa maneira sentia-se mesquinho, mas não queria dar holofotes ao seu sofrimento. Lembrou-se da situação da própria menina Lourdes, com uma mãe viciada em drogas. Não, seu sofrimento não era nada, mesmo que para aliviar-se precisasse recorrer à comparação.

Juliano estava resoluto a prosseguir com as tentativas de adoção, não queria que a menina fosse para algum abrigo. Pelo o pouco que pesquisou, descobriu que algumas crianças ficavam, algumas vezes, mais de dois anos nestas instituições.

Também descobriu que quanto mais tempo a criança passasse no abrigo, menos chance tinha de ser adotada. Era uma corrida contra o tempo.

Seu interesse pela adoção crescia conforme os véus da esperança eram-lhe retirados dos olhos, para elucidarem-se a certeza de sua sina imutável. Ele era estéril sim. Um homem estéril.

Procurou tudo o que podia sobre o tema que lhe surgia como salvação - Nestas andanças por páginas online - descobriu um grupo de apoio em sua cidade, para os que cogitavam a adoção. Diante de tantas dúvidas que iam surgindo, quanto mais ele pesquisava, entendeu que era urgente se chegar para um Grupo de Apoio.

Era estranho, mas quase ninguém com quem ele conversava tinha conhecimento desses grupos. Era como se fosse um universo à parte.

Imaginou que mesmo a vizinhança que residia ao lado da sede do Grupo, desconhecesse suas reais finalidades. De certa maneira a vista restringe-se seletivamente em recortar para o campo de visão humano somente aquilo que é do seu interesse.

Sentiu-se novamente mal.

Foi para a casa conversar com a esposa.

Ele e a mulher, ao final do dia de trabalho, sentaram um diante do outro, com as mãos sobrepostas na mesa de vidro. A incomunicabilidade inicial dos seus constrangimentos encontrava salvação na observação dos materiais transparentes a suas frentes.

Seus discursos eram emitidos por pequenas sequências, que se seguiam a longas pausas, de modo que acabaram fazendo mau uso do tempo que tinham disponível para conversar.

_Eu conheci Lourdes, e realmente estou confusa com a situação – Lucrécia então umedecia os lábios secos pela tensão das emoções, os lambendo discretamente, passando a língua ora na parte superior da boca, ora na inferior– Quando a vi meu amor, sabe? Eu senti algo especial. Ela é linda, tem pele morena, mulata, o nariz é bem largo e os lábios são amarelados. Se eu senti algo tão forte por ela, assim, sem precisar vê-la vestida como uma princesa, como posso negar, que me faria muito feliz tê-la como filha?

Juliano estremeceu pela intensidade das declarações. Aquela cena que se passou com sua esposa, o tornava mais preso à realidade, como se o peso das palavras trouxessem a certeza da situação que estavam vivendo.

Ousou quebrar aquele muro de gelo que até então os congelava em posições distantes.

Pegou as mãos de Lucrécia.

_Amor, temos que levar todas essas dúvida ao Grupo de Apoio, pelo que pesquisei, lá terão profissionais aptos a nos ajudarem. E eu descobri uma palestra muito interessante que será tema do encontro de amanhã, fala justamente sobre a raiva.

As sobrancelhas de Lucrécia se ajuntaram reforçando uma linha central em sua face.

_Quero dizer, Lourdes já tem mais de três anos, se formos estimulados a prosseguirmos com essa ideia teremos que nos atentar ao fato de que essa menina pode desenvolver este sentimento.

Lucrécia não teve tempo de esboçar uma reação. O bipe do seu relógio a acordou de suas reflexões. Seu coração descompassou-se.

_É amor, vamos lá para mais esse desafio. Vamos conhecer o grupo e tirar as nossas dúvidas.

Novamente aquela cortina de frieza se espalhou entre os dois. Não porque faltassem sentimentos, pelo contrário. A abundância de emoções os atrapalhava a estruturar seus pensamentos de forma lógica. E também suas sensibilidades tão apuradas, reforçadas pelos anos de convivência, os tornavam mais aptos a se compreenderem mesmo no silêncio.

Os carros que diversamente dirigiam para destinos diferentes eram apenas reflexos no caminho, cuja velocidade normal, misturadas aos seus nervosismos parecia reduzir o trajeto a uma mínima distância, como se os corpos tivessem se transportado até o seu destino final.

Os vestígios de tudo o que representavam o mundo externo, só foram perceptíveis, quando o casal da janela do carro, encarou o cimento pintado de azul. Seguindo sua vista de baixo para cima se depararam com a faixada escrita: do Grupo de Apoio.

Estacionaram o carro, puxaram o câmbio. Os barulhos dos seus passos eram sufocados pela movimentação que vinha de dentro do local. Um homem de óculos acenou para eles com um sorriso amigo, tentando pela cordialidade quebrar aquele estranhamento, que estava estampado nos rostos de Lucrécia e Juliano.

Uma vez dentro da sala perceberam que ela não era o que parecia ser. Olhando de fora o ambiente tão sóbrio parecia suscitar a mente o julgamento falso de que aquele local era um ambiente austero.

Mas a sala estava arrumada em círculo, e mais pessoas iam chegando, amontoando-se mais rapidamente a cada passada de tempo, indicando que o início do encontro já iria começar.

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Assunto de CriançasOnde histórias criam vida. Descubra agora