Um passo

3 0 0
                                    



A apreensão de Lucrécia foi crescendo à proporção que os dias iam se passando. Cada virada de noite que prenunciava um novo dia, era mais um dia de vacância, porque nem toda a agitação da rotina acelerada que tinham, podia superar a insignificância dos dias que se passavam sem uma resposta.

Ela trabalhava em uma escola e por este motivo, o contato com as crianças servia-lhe como uma mola de retorno aos mesmos pensamentos repetitivos.

As conversas com o seu marido ganhavam tons monocromáticos de tão fastidiosos. No começo, o tópico da adoção era um assunto atraente, mas conforme as expectativas iam sendo surradas pelas camadas de lentidão da Justiça, o retorno ao assunto de seus sentimentos predominantes, ganharam tons de redundância.

Os técnicos da Justiça compareceram às dezoito horas de uma terça-feira ensolarada na casa de Juliano e Lucrécia.

Eles sabiam que naquele dia iriam receber esta visita, mas não puderam ganhar um dia de dispensa para com suas obrigações de adultos. O trabalho estava lá para ser feito e não havia meios de blindar suas obrigações.

Por isto, naquela tarde de terça-feira a aparência que transbordava das feições abatidas de cansaço, não eram fiéis à emoção sincera e interna que os animava.

Lucrécia ao escutar a campainha da porta e vislumbrar pelo olho de gato quem eram os seus visitantes, gritou pedindo um minuto de espera, e correu para o banheiro do térreo, para se olhar uma vez mais no espelho.

Percebeu que por mais maquiagem que passasse não havia sido capaz de enfraquecer as marcas profundas das olheiras. Temeu por isto. Desejou que sua genética fosse um pouco mais forte e fina, para suportar as pesadas demandas de energia que a vida exigia.

Respirou fundo e voltou novamente para atender à porta. Sabia que embora sua face denunciasse o cansaço, seu espírito conseguiria superar as fraquezas do seu corpo humano.

_Olá.

Os profissionais eram um casal. Ele o assistente social, e ela a psicóloga. Ambos sorriram e foram convidados a entrar.

A sala de recepção demonstrava o aprumo dos habitantes da casa. Os móveis refletiam brilho mostrando o forte empenho com o qual foram limpos. Uma luz suave foi acesa para dispersar os tons escuros do final da tarde.

Juliano já havia levado para a sala uma bandeja de café e chá, com uns biscoitos de maisena que sempre se casavam bem com as refeições da tarde.

As conversas tiveram inícios com formalidades, apresentações, esclarecimentos sobre o caso. Após estas mediações de formalidades as perguntas importantes começaram. Por que optaram pela adoção? Qual a profissão de ambos? Há quanto tempo tentavam ter filhos? Qual tipo de relação, eles tinham com a família de Lourdes e Maria? Como pretendiam manter a relação familiar entre mãe e filha biológicas?

As enxurradas de perguntas vieram mecanicamente. Era como estar sentado no consultório médico de um senhor sem expressões, acostumado com a padronização das tecnicidades do seu trabalho. Isso era um pouco intimidante para o casal. Horas antes Juliano e Lucrécia haviam se sentado na cozinha repassando como em prova, o roteiro de suas justificativas.

Mas ali do contato com aquelas pessoas obstruídas de espontaneidade, as palavras que eles emitiam denunciavam um tratamento destituído dos gracejos que só a sensibilidade podia dar. Aquela frieza demonstrada pelos profissionais, quase fizeram com que Lucrécia e Juliano perdessem o compasso que os embalava na certeza da adoção.

Conforme as reuniões se tornaram mais frequentes, Juliano foi podendo estruturar suas impressões em opiniões fortemente fundamentadas à cerca dos técnicos psicossociais que os visitavam.

Percebeu que ele e sua mulher não deveriam desvanecer de suas esperanças de que a adoção realmente pudesse acontecer. Foram então pela paciência e convicção de seus objetivos, desamarrando aquela rigidez de gestos e falas que os profissionais demonstravam.

Após uma pequena convivência, Lucrécia havia sugerido ao marido que a exigência daquele tipo de trabalho criava a necessidade de uma neutralidade que pudesse proteger os profissionais de serem facilmente amarrados a apelos emocionais de qualquer casal desesperado.

Mesmo com as dificuldades, o casal conseguia desemaranhar aquele nó fechado e estreito de resistência dos agentes psicossociais.

O assistente social se chamava José e a psicóloga de cabelos cumpridos e acastanhados se chamava Dora.

Era engraçada para a vista, a confluência de harmonias que o casal de profissionais despertava aos sentidos. Dora era baixa de cabelos impecavelmente alinhados tecendo uma grande linha reta pelo acúmulo de linhas menores que caiam até a altura da cintura. Já José tinha uma cara cansativa. Era difícil dizer se este julgamento de sua inexpressividade vinha da carga de cansaço que recaía aos ombros de Juliano e Lucrécia naquele horário de visita.

O último encontro com Dora e José havia acendido uma alegria latente que já ameaçava despontar, apenas com um pequeno incentivo que Lucrécia e Juliano pudessem receber. Foi concedido a eles o direito de conviver com Lourdes pelo prazo de vinte dias ininterruptos, desde que a menina não demonstrasse forte contrariedade a esta decisão.

Antes de decretarem a decisão por ordem judicial formalizada, ouviram Lourdes dissertar sobre sua vontade.

E o resultado não podia ter sido mais positivo.

Maria tropeçava entre um tratamento reabilitador e seu desejo ardente de se embriagar nos subterfúgios aliviantes das drogas. Deste modo, Lourdes desejava encontrar, por sua vez, o seu próprio alívio.

A resposta afirmativa também veio de Maria - que lutava com a razão e o desejo, conscientizando-se da importância de retirar sua menina das garras do seu próprio monstro interno, que tomava forma sempre que ela ingeria drogas.

O sábado, tido como dia de descanso divino de Deus, também seria o dia de descanso de Lourdes, pois ela experimentaria pela primeira vez a convivência em um lar bem estruturado.

Já para Lucrécia e Juliano esse sábado seria o encerramento de uma semana de intenso trabalho e cansativas reuniões, compensados pelo prêmio de ter sua amada Lourdes dormindo de baixo do mesmo teto que eles.

spa11<

Assunto de CriançasOnde histórias criam vida. Descubra agora