Segunda-feira, 23 de janeiro

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Segunda-feira, 23 de janeiro

Ontem eu tomei um susto muito grande. Está correndo na Boa Vista que
anda por aí um ladrão muito malvado, que passou em Diamantina e os soldados
não puderam pegar. Ele mata para roubar e quando os soldados chegam, se é
em casa, ele vira vassoura, cadeira ou outra coisa; se é no mato ele vira cupim.
Todos vivem apavorados. Ontem de noite meu pai estava no rancho de tio
Joãozinho, do outro lado do córrego, e nós já dormindo, quando um cachorro
latiu. Mamãe correu para a porta do nosso rancho e começou a gritar:
“Joãozinho! Capitão Gasparino! Seu João Roberto!”. Nós acordamos e
corremos para a porta, para ver o que era. Ela gritou para Renato: “Corre ali ao
rancho de Joãozinho e chama o delegado e os soldados que estão lá!”. Disse isso
gritando. Nós abrimos a boca, pensando que ela tivesse ficado doida. Aí ela disse
baixo: “Calem a boca que eu explico”. E nos disse que o homem que vira cupim
estava ali perto, porque o cachorro latiu e ela teve medo que ele fosse atrás de
meu pai procurar diamantes. Ela gritava alto aqueles nomes para o ladrão
pensar que eles estavam no rancho de tio Joãozinho e fugir.
Meu pai chegou daí a pouco e achou graça na ideia de mamãe.

Domingo, 29 de janeiro

Hoje todos nós ficamos pasmos com uma coisa que aconteceu e eu achei
que foi uma adivinhação. Como é que se pode esperar ter um bilhete de rifa e
tirar na certa, como Renato e Nhonhô? Quando vínhamos para as férias,
Totônio apareceu na Chácara com uma rifa de um cavalo pampa e meus
irmãos ficaram com tanta vontade de ganhar um bilhete, que Dindinha
comprou um e lhes deu. Eles, desde essa hora, ficaram donos do cavalo e só
pensavam nisso. Começaram a fazer trato de buscar capim, passear no cavalo e
acabavam sempre brigando. Eu, como nunca esperei o cavalo, via as brigas e
achava até graça na bobice dos dois. Mamãe é que suspirava e dizia: “Se já
brigam sem o cavalo, o que fariam se o tivessem mesmo?”. Eu dizia: “Isto,
Deus é grande, e não deixará acontecer. Ninguém precisa aqui de cavalo para
dar trabalho e briga”. Eles continuavam na mesma conversa. No almoço, no jantar, era só discussão por causa do cavalo. Hoje mamãe nos chamou para
irmos ao Bom Sucesso. No caminho, avistamos Emídio que vinha na estrada,
montado no cavalo, e os dois gritaram ao mesmo tempo: “O cavalo!”. E saíram
na disparada. Não é mesmo uma adivinhação?

Quarta-feira, 15 de fevereiro

Graças a Deus o carnaval passou. Não posso dizer que passou bem porque
apanhei de vovó, coisa que ela nunca fez.
É sina minha todo o mundo que gosta de mim me infernar a vida. Todas as
minhas primas são governadas só pelos pais. Ah, se eu também fosse assim!
Meus pais é que menos me amolam. Não tivesse eu o governo de vovó e tia
Madge, teria ido ao baile de máscaras do Teatro. Desde os sete anos eu
sonhava fazer doze para ir ao baile. Agora estou com treze e apanhando para
não ir!
Quem me fez vontade de ir ao baile foi tia Quequeta, contando o que elas
faziam no tempo delas. Uma amiga dela pôs máscara, disfarçou a voz e buliu
com o pai a noite inteira, a ponto de ele ficar apaixonado e no dia seguinte, em
vez de ir para o almoço, ficou passeando no jardim, de cabeça baixa, pensando
na mascarada. Outra amiga deixou o marido ir para o baile e foi atrás, de
máscara, brincou com ele, deixando-o apaixonado, a ponto de ele ficar
suspirando a noite inteira.
Minhas tias ainda têm as saias-balão que se usavam. Que vontade de ter
sido desse tempo! Hoje não há nada disso, mas eu queria ir assim mesmo.
Glorinha ficou só me inchando a cabeça desde cedo. Pedi licença a mamãe
e ela disse: “Se sua avó deixar, eu deixo”. Pedi a vovó: “Vovó, mamãe deixou. A
senhora me deixa ir ao baile com a Glorinha?”. Ela disse: “Não deixo não!”. Saí
batendo o pé com força e caí na cama dela, chorando. Ela vem, tira a chinela do
pé e me dá duas chineladas, dizendo: “Então chore com razão!”. Bati com as
pernas mas não me levantei.
Mas valeu, porque hoje ganhei um vestido e uma pratinha de dois mil-réis.

Sábado, 18 de fevereiro

Faz hoje três dias que eu entrei para a Escola Normal. Comprei meus
livros e vou começar vida nova. O professor de Português aconselhou todas as
meninas a irem se acostumando a escrever, todo dia, uma carta ou qualquer
coisa que lhes acontecer.
Passei na casa de minhas tias inglesas e encontrei lá Mariana. Ela foi a
aluna mais afamada da Escola e sempre ouvi minhas tias falarem dela com
admiração. Ela esteve me animando e disse que o segredo de ser boa aluna é
prestar atenção, tomando notas de tudo.
Tia Madge disse que Mestra Joaquininha lhe falou que eu fui a aluna mais
inteligente da escola dela, mas era vadia e falhava dias seguidos. Isto é verdade,porque o ano passado fomos, muitas vezes, passar dias com meu pai na Boa
Vista. Não sei se sou inteligente. Vovó, meu pai e tia Madge acham; mas só sei
que não gosto de estudar, nem de ficar parada prestando atenção. Em todo caso
eu gosto que digam que sou inteligente. É melhor do que dizerem que sou burra,
como vai acontecer na certa, quando virem que não vou ser, na Escola Normal,
o que eles esperam. Hoje já vi o jeito. Achei tudo difícil e complicado. O que me
vale é que eu tenho facilidade de decorar. Quando eu não puder compreender,
decoro tudo. Mas no Português como é que eu vou decorar? Análise, eu nem sei
onde se pode estudar. Só daqui a dias poderei saber como as coisas vão sair.
Escrever não me vai ser difícil, pelo costume em que meu pai me pôs de
escrever quase todo dia. Duas coisas eu gosto de fazer, escrever e ler histórias,
quando encontro. Meu pai já consumiu tudo quanto é livro de histórias e
romance. Diz ele que agora só nas férias.
Ainda não comecei a estudar e já estou pensando nas férias. Que bom vai
ser quando eu estiver na Boa Vista, livre da Escola, sem ter que estudar. Mas
um ano custa tanto a passar!
Vou deitar-me e pedir a Nossa Senhora que me ajude a estudar e abra
mesmo minha inteligência, para não desapontar meu pai, vovó e tia Madge.

Minha vida de Menina.Onde histórias criam vida. Descubra agora