Qualificação

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Na sala de necrópsias... dois cadáveres em mesa, ambos nus e de punhos e tornozelos já desamarrados, aguardavam a presença do legista do plantão que estava ocupado em outro lugar, não exatamente no perímetro da Instituição de Medicina Legal, mas como de praxe, a caminho, foi o que Gxxx pensou sem dizer nada, ele também constava na folha de pagamento como médico legista da instituição, só que ele não faria a perícia, não estava na escala do dia, estava lá porque era dia de visita dos alunos da faculdade de medicina e estava feliz por, mais uma vez, ter sido designado para arrastá-los pelos corredores, enquanto tampavam o nariz. Ele mesmo apenas perambulava como um espectro pelas instalações do lugar, não tinha muito mais o que mostrar do lugar. Não faria nada além disso nesse dia... talvez incitar alguma discussão acalorada a respeito da ciência criminal... era vantajoso mostrar-se interessado em seu aprendizado, eles poderiam comentar e ele conseguir um cargo na escola ou, ao menos, uma bonificação.

Gxxx matava o tempo iludindo-se que estava ensinando os alunos, enquanto aguardavam nos corredores do necrotério na área das geladeiras, com a entrada da sala de necrópsias logo mais à frente. Ele puxava as gavetas, mostrando as geladeiras para conservação dos cadáveres, apontava o depósito para o material coletado para despacho ao laboratório do Centro de Criminalística.

Os alunos não mostravam muito interesse no assunto e nem no lugar, mantinham-se um pouco afastados pelo odor que saía dos compartimentos onde eram engavetados os corpos. Ele sabia que não viam motivo para estarem num local de exame pericial, afinal, eram girinos de médicos, queriam tratar e salvar. Apenas um mostrava algum interesse, até demais talvez, porque dizia que estava propenso a seguir essa especialidade dentro do mundo médico. Seu maior entusiasmo, e dizia sem pudores, era que não precisava da especialização para o ingresso, ele não seria um escravo, dando suas horas de trabalho e seu intelecto de graça para algum hospital, algum instituto, só precisava prestar e ser aprovado no concurso público, assim dizia e Gxxx não o desmentia, não disfarçava.

Na ala de entrada para identificação e retirada de atestado de óbito e laudos necroscópicos... no fim daquele corredor... alguém gritava e tumultuava o andamento dos procedimentos.

Normalmente ele nem se aproximaria, mas sentiu a necessidade de mostrar seu interesse comunitário policial aos cidadãos alunos. Daria uma olhada, veria o que estava acontecendo e depois deixaria os funcionários cuidarem do assunto, como de praxe, se não tivesse percebido que os alunos olhavam-no e cochichavam que se um perito fosse à frente, a pessoa transtornada seria controlada ou acalmada, pela autoridade ou benevolência, se ele tivesse... Gostou disso, sentiu-se importante e resolveu tomar uma atitude.

Chegou na entrada de identificação com seu séquito e era uma mulher que gritava e batia contra o balcão, ofendendo verbalmente o funcionário da recepção. Tinha ido fazer o reconhecimento do corpo do marido, mas causava escândalo por causa dos possíveis talhos no corpo... como faria o enterro com o defunto naquele estado, onde estavam os órgãos, se não foram vendidos...

Gxxx se arrependeu de ter pensado em causar uma boa impressão aos garotos... Sequer conseguia lidar com pessoas no seu dia-a-dia, muito menos em conflito, mas era tarde, estavam todos lá, logo atrás, esperando ansiosos a imposição da ordem.

A mulher percebeu sua presença encabulada e direcionou diretamente a ele as acusações... Era uma figura de baixa classe com os cabelos descoloridos arranjados displicentes e espiaçados num rabo-de-cavalo, usava uma máscara de maquiagem imprópria para suas feições e para o horário, dando a sua aparência um ar circense em conjunto com suas roupas de número menor do que seu manequim... alguns volumes vazavam por entre as marcas de onça e outros marcavam seus culotes em relevo na calça pelas canelas mais do que justa e dourada... mostrando sua volúpia um tanto flácida e empelotada, denunciando que teria passado da casa dos trinta. Ela tinha se arrumado para comparecer e os trajes não pareciam ser tão pobres como seu comportamento e vocabulário de baixo calão. Ela lançou os papéis em sua cara e gritava apontando o dedo com unhas verde neon em riste diante da face de Gxxx que a olhava por cima com seus olhos encrispados, como se a luz estivesse impedindo-o de abri-los. De repente, a mulher engasgou, esbugaçhou os olhos que pareceram sair das órbitas e começou a resfolegar, a gritaria ficou truncada pelas ruidosas tomadas de fôlego da senhora, até que seu pescoço começou a empalidecer, enrubescendo em seguida, suas mãos a tremer e as pernas a fraquejar. Parecia parte do show para os seus espectadores, inclusive Gxxx, que não tinha vivência no atendimento à pessoas enfermas ou feridas, até que o funcionário da recepção, um homem maduro e pardo que com seu uniforme ocre parecia um bloco monocor articulado,  desconfiou que ela realmente estivesse passando mal e desencostou do balcão para dar a volta e ir para seu lado.

Exame de corpo delituoso: ExpurgoOnde histórias criam vida. Descubra agora