Exame das vestes

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A tranca da porta destravando o acordou.

Não estava de todo escuro, diria mais nebuloso.

Inspirou e expirou profundo.

Foi espreguiçar e travou.

Agora seus olhos estavam bem abertos, a respiração suspensa.

Tentou olhar ao redor, os olhos estavam fixos.

Pensou em tentar ouvir, mas não teve a chance. Foi arrastado para a luz amarela, podendo ver novamente o teto sujo de antes. Sentiu o engate da maca… na gaveta.

O pesadelo não tinha acabado! Era horrível…

Começou a chorar. Não se importou se alguém veria suas lágrimas, ouviria-o balbuciar por sua mãe. Xingou todo mundo e fechou rancoroso.

Aquilo não era certo, ele não merecia, não foi ruim... displicente talvez, comodista, invejoso, mentiroso, leviano, irresponsável, aproveitador… Mas quem não era?! Quem nunca tirou casquinha? Quem nunca deixou passar?… Ele nunca roubou de ninguém... nada tão sério... só palavras, histórias, imagem. Podiam acusá-lo de ser um cópia, não de ladrão, não de bandido. Bandido faz mal, ele não fez nada disso, ele se virava do jeito que dava para dar as provas arrumadas para bandido sair de circulação, ou não... Eles consideravam a pessoa. Não era mal, era justiça. Ele era justo. O Estado não era justo com ele, pagando uma miséria depois de todo o trabalho para ser médico, ele tinha que tirar um extra, todo mundo fazia isso e ele ainda fazia pouco! O cadáver é do Estado até que ele diga que não precisa mais, isso é segurança pública. E daí que a família não gostou? Ele não falou mentira. E daí que ele não deixou eles participarem? E daí… que ele não falou com eles… mandou o funcionário falar… ele não precisava falar… Ele até gostava de falar e era eloquente.

Onde estava agora?

O teto mudou… ficou pior.

Quem é que estava segurando ele?

Onde estava pondo?

Nem pôs… Huou! Quem é esse? Esse não é… Esse não… Sai. Sai! Não, você não! Por quê?... Eu tenho família. Cadê minha família? A gente tem um acordo, eu pago a pensão direito, meu filho gosta de mim, ex também vale como família. Cadê meus primos, meus tios? Se eu morri, cadê meus pais? Eu não vi ninguém... Não!… Ele está me balançado. Eu estou vendo o cotovelo, eu estou vendo o braço… O que é que está fazendo esses estampidos?... Ele está soltando os fios... Eu estou abrindo, já estou mole de novo... desabrochando... Não abre, não solta os fios! Devolve meus órgãos! Eu… que cheiro é esse? Serragem e aquela mistura... Fica longe de mim! Desgraçado! Eu vou te acertar. Eu vou te acertar… Eu não morri… Não pode injetar essa porcaria em mim, vai me matar! Não pode! Solta! Sai daqui! Não injeta isso, tira essa porcaria do meu pescoço… Não deixa isso aí! Solta meu braço, eu sei que você pegou o meu braço. Pára de dobrar! Estou vendo sua cabeça, você está espiando meu sovaco, eu estou vendo o seu topete ensebado. Eu sei o que você quer… Deixa os meus braços! Por que você não me deixa?… Não está gostoso, isso não é massagem, eu sei o que você está fazendo… Onde você foi? Está nas pernas? Eu devia era te chutar essa sua boca com esse bigode amarelo de cigarro! Meter uma joelhada na sua cara...

Eu não mexo.

Não é possível, isso não está acontecendo, não tem como…

Isso acontece com todo mundo?... Mas nós sempre dissemos que ninguém nunca viu nada aqui. Nunca ninguém viu fantasma, alma, assombração. Nós abrimos o corpo todo e nunca achamos nada. Eu nunca achei nada. Nunca vi nada. E eu sempre usei o crucifixo no pescoço, por precaução… Não pode ser castigo, talvez aconteça com todo mundo. Está acontecendo comigo, eu não fiz nada errado para merecer algum castigo, não assim. E cadê aquela ex? Cadê meu filho? Aquela pilantra tinha que estar resolvendo isso… Ela deve estar, só que resolvendo a pensão que o meu filho vai receber.

Exame de corpo delituoso: ExpurgoOnde histórias criam vida. Descubra agora