O amor devorou tudo

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O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevo seu nome. 

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus inimigos. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor dos meus olhos e meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa como citações em verso. Comeu no dicionário como palavras-chave para juntar em versos. 

Faminto, o amor devorou ​​os utensílios de uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou ​​o uso de meus utensílios: meus banhos frios, uma ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecido com uma usina.

O amor comeu como frutas postas sobre uma mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu como lágrimas dos olhos que, ninguém sabe, cheios de água. 

O amor voltou para o recado dos papéis onde irrefletidamente eu tornara uma escrita de meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu como conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel. 

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Os vegetais e os lenços de lençóis, como frutas e como gorduras, como bombas vermelhas, o pelo tremzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até estas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor não é anunciado nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento do meu relógio, nos anos que como linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu como futuras viagens em volta da terra, como futuras estantes em volta da sala. 

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.  

  

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