TRANSFERENCIA SINÓPTICA NIVEL UM
PROGRESSO DE TRANSFERENCIA DE DADOS: 75%
RELATORIO DE ERROS: 2/1000 ARQUIVOS MALICIOSOS – AÇÃO DO FIREWALL EM PROGRESSO
PRAZO DE TERMINO: 52 MINUTOS
Eu fiquei por pelo menos uma semana com esta mensagem por baixo de minhas pálpebras, circulando e circulando o meu cérebro até eu cansar das letras. De todas as letras. Eu não queria ler nunca mais.
Mas alguns sussurros diziam que era o melhor a ser feito. Que era muito melhor resgatarem um vegetal, que deveria ter morrido com a sua família, para a vida. Para a ciência. E quando eu despertei, senti que algo rasgava o meu peito de dentro para fora. A incoerência, a dor da morte... eles deveriam ressuscitar alguém que queira viver. Que tenha alguém esperando do outro lado. Não a mim. Me despertaram para a solidão.
E, enquanto estou com meus olhos fechados, por um misero momento pensei estar de volta àquela maca. De volta as mãos dos cientistas que trocaram o meu cérebro por um sistema burro e lerdo. De volta a dor de despertar sozinha. Mas quando acordo, com um leve abrupto, meu coração trata de se acalmar.
O rosto do príncipe está colado ao meu. As bochechas, levemente suadas, parecem fita isolante nas minhas e o queixo está bem cravado em meu ombro. Tento encará-lo, mas é difícil mexer a cabeça sem acordá-lo no processo. Mas, forçando os meus olhos a tentar ver um pouco de seu rosto, vejo que ele literalmente está apagado. Sinto seu peito subir e descer em um ritmo lento e a boca parece-me estar entreaberta. Ainda assim, não poderia ver algo mais gracioso que isto.
Me sinto feliz por ter acordado desta vez. Finalmente, agradeço àqueles médicos pelo cérebro de lata que me deram.
Como se adivinhasse que eu acabei de acordar, Narkys dá os primeiros sinais de vida, quando solta um leve suspiro, ainda de olhos fechados, e aperta um pouco o abraço que se recusou a deixar desde que pegamos no sono.
- Oi... ainda não saiu correndo? – Ele pergunta, em um sussurro quase inaudível.
Dou uma risadinha quase tão baixa quanto suas palavras.
- Não... ainda não.
Tiro alguns cabelos negros de sua testa, como se eu contasse fio por fio. Cada fio é um pedaço de glória, tecido com amor e carinho. Então ele abre os olhos, com o castanho se perdendo na ausência de iluminação do quarto, transformando o chocolate em um eclipse solar. Assim que ele me vê, o sorriso mais sincero nasce e com ele nasce a minha alegria. Assim como eu, resolve brincar de contar os fios do meu cabelo.
-Meu doce favorito é sorvete de chocolate.
- Como? – Questionei, sem entender aonde ele queria chegar.
- Não gosto muito de esportes. Malho, mas eu gosto mesmo é de videogames.
Rio, desta vez, deixando ele prosseguir.
- Quando eu era criança, queria que meus pais me dessem um irmão. Ao invés disto, compraram um cachorro, que acabou morrendo de asma.
- Cachorros têm asma?
- Não sei. Só sei que ele morreu com algo relacionado a falta de ar.
Insensivelmente eu ri. Por sorte, ele riu junto.
- Eu como muito. Tipo, muito mesmo. Adoro comida e trocaria qualquer um por ela.- Até eu? – Inclinei a cabeça para o lado, batendo em seu braço.
- Principalmente você. Já disse que não gosto de você, Áttie.
Ele me dá um cutucão na barriga e eu me desato a rir de novo.
- E você, me trocaria pelo que?
“Nada”, é o que quero dizer. “Nada, nem mesmo um cérebro de verdade.” Mas, não posso. Resolvo entrar no jogo.
- Um balde Raynon 207, edição Black Services.
- Me trocaria por um balde? – Ele finge decepção.
- Claro. Ele é muito prático, grande, bonito e tem rodinhas. Você não tem rodinhas, meu príncipe.
- Posso providenciá-las agora mesmo!
Acho que nunca ri de tantas formas consecutivas ao mesmo tempo. Depois das gargalhadas, ambos encaramos o teto escuro do lugar, como se nele houvessem estrelas ansiando por serem observadas.
- Fomos rápidos demais, Áttie.
Meu sorriso se vai, junto com suas palavras.
- Mas não me arrependo. Não mesmo. Ainda assim, agora podemos ir devagar. Conhecer um ao outro, com coisas bobas. Contanto que... contanto que você não enjoe de mim.
Então me viro para ele, que parece estar me encarando todo esse tempo. Os olhos ainda estão um tanto miúdos pelo sono, mas ele não abandona seu encanto nem mesmo quando quer. Parece que a cada instante, eu conheço um novo Narkys. E cada um deles não me decepcionaram até agora.
- Meio impossível enjoar de você.
Ele beija a minha mão e depois a bochecha, como se ela fosse sensível demais. Como se fosse quebrar.
- É reciproco.
Então me beija, de verdade. E deu beijo parece querer me levar a lugares mais altos que o céu. Ao espaço, para conhecer o universo. Mas a magia se esvai quando três pancadas fortes na porta nos sobressaltam e Narkys, acidentalmente, morde o canto da minha língua.
- Alteza! – Alguém grita por trás da porta, enquanto eu tento suprimir meu resmungo dolorido, abanando minha língua como se tivesse engolido um café muito quente.
Narkys parece constrangido demais. Acompanha os mesmos movimentos com a mão, como se abanar fosse tirar a dor. Chega a ser cômico, mas, se eu rir, doerá.
-Ah... O que é? – Ele responde ao chamado, claramente irritado.
- O senhor tem uma reunião em dez minutos.
- Droga! – Ele resmunga e estrala os dedos, acendendo a luz como mágica. – Eu já estou indo, avisem para me esperar.
Ele se levanta e começa a vestir as mesmas roupas do baile, em uma confusão imensurável, tropeçando nas próprias pernas, enquanto tenta colocar as meias. Me limito a alguns risos, mas logo o acompanho, em um ritmo mais calmo.
- Áttie, me desculpe por sair assim. Olhe, vai dar um passeio por Atenas. Não se atreva a fazer nada. Gaste seu tempo durante estes dias com boas férias, até o dia do seu teste de aptidão – ele coloca o paletó, mas continua – Você merece. Trabalhou demais para o mesmo chefe idiota por anos. – Ele olha para mim e faz um leve círculo em minha bochecha. – Vamos, eu vou chamar um carro para você antes da reunião.- Ah..., mas não acha que será um pouco constrangedor se eles nos pegarem saindo juntos?
Um sorrisinho malicioso, mas ao mesmo tempo infantil deixa Narkys ainda mais travesso.
- Bom eu espero que isso aconteça com muita frequência daqui em diante – ele me oferece o braço – vamos, princesa.
Um leve rubor esquenta minhas bochechas quando aceito o braço. “Princesa... como se fosse possível. ”
Ele abre a porta e caminhamos pelo corredor, sendo furados por diversos olhares de seus conselheiros. Descemos de elevador até a saída C, onde têm alguns dos muitos carros do palácio. A luz do Sol ferve meus olhos que, por toda uma noite, estavam acostumados com a escuridão do quarto de Narkys.
- Caifas, chame um motorista para a senhorita Átisla.
Sinto algo muito estranho diante minha visão. Como se ela fosse uma TV antiga, cheia de fantasmas pela falta de sinal. O calor sobe da ponta dos meus pés até a base da minha cabeça. Pisco algumas vezes, tentando eliminar o mal súbito. Mas algo aperta o meu cérebro mecânico. Comprime em uma capsula e pensar dói. A voz de Narkys fica distante inalcançável, mas parece casual. Eu não devo estar aparentando o que estou sentindo. A morte é interna.
- Áttie, me ouviu? O carro está bem ali.
É a última coisa que eu ouço, abafada pelo colapso. Antes de meus olhos subirem até o nada e meu corpo desligar no ar.
Eu desligo antes mesmo de sentir o chão.Só tenho uma coisa a dizer.
Não fui eu.
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Coroas de Lata - Sinópticos |Conto2|
Short StorySegundo conto da série Coroas de Lata (Primeiro conto: Sintético - disponível no perfil da @QuaseCarol) ☆Prêmio de Primeiro Lugar no desafio 6 (distopia) do RealezaBr☆ ----------------------------------------------- Abaixo a monstruosidade. Era isto...