INICIALIZANDO.
FAZENDO BACKUPS DE MEMÓRIA.
NÍVEL DE CALOR CORPORAL – 13°C (AUMENTANDO)
CONEXÃO DE FIOS E PLAQUETAS CEREBRAIS - 75%
LÍQUIDO CORPORAL - ESTAVEL
AUMENTO DE TEMPERATURA CORPORAL – 37°C
CONEXÃO COMPLETA - 100%
FINALIZADO.
Uma corrente de eletricidade percorre meu corpo sem piedade, sem pressa e com total atenção em meus ossos e órgãos interiores. Sinto que fui desmontada e então fixaram, parafuso por parafuso, porém encaixaram as partes nos lugares errados e agora tudo dói e queima de dentro para fora.
Meu cérebro pulsa em minha cabeça, como se agora sua função fosse bombear sangue ao invés de pensar. Em frente as minhas pálpebras fechadas, meu visor me mostra vários comandos de inicialização e sobre meu estado atual. Isso queima minhas retinas. É como encarar um fiapo de luz depois de anos enxergando apenas o escuro.
Quero desaparecer.
- Áttie.
Uma voz penetra meus ouvidos e tem minha atenção total. Meu coração acelera e pula enlouquecido dentro de mim, subindo aos poucos até o meu cérebro, se enrolando novamente de um jeito teimoso nos fios de cobre. Embaraçando a si mesmo, como da primeira vez.
Igualmente como foi no início.
Minha vontade é de levantar as mãos e chamar por ele. Narkys. Meu príncipe, Narkys. Quero abrir os olhos e olhar diretamente para seu mar de chocolate. Mas não importa o que eu queira, não consigo me obrigar a isso.
- Áttie, abra os olhos. - Eles permanecem fechados. Abram. Imploro. Olhem para ele. - Doutor, ela não vai acordar?
- Ela já está acordada, Alteza. - Uma voz que nunca ouvi diz. Grossa e altiva. - Basta esperar o tempo dela agora.
Meu tempo. Se fosse minha escolha já teria aberto os olhos há tempos.
COMANDO MANUAL AUTORIZADO.
Os olhos enfim se abrem. Primeiro tudo o que vejo é branco. Nada por cima de nada e vezes nada. Aos poucos vou me ajustando a claridade, meus olhos se acostumam com o ambiente e param de doer. Quando finalmente meu infinito azul encontra a janela da alma de Narkys, meu coração desce para a garganta e estremeço.
Seu olhar para mim não é de carinho, diversão ou preocupação. A testa franzida, os olhos estreitos e as pálpebras baixas, me alertam sobre um tipo de sentimento que nunca vi Narkys tomado. E agora, quando tudo o que posso fazer é encará-lo, o que vejo é raiva situada em suas duas írises escuras. Simples e doloroso assim.
- Olá, Átisla. - Diferente da revolta em seus olhos, seu tom de voz é calmo. Ele está sentado em uma cadeira ao lado da cama onde estou repousada. Não consigo fazer nada além de mexer o pescoço e os braços.
Engulo em seco.
- Narkys... eu... o que houve?
- Você apagou.
Duas palavras seguido de um silêncio eterno. Ou bem que poderia ser. Nenhum de nós dois fala por muito tempo.
- Apaguei? - Repito como um papagaio bobo. Ele assente. Um movimento mínimo de cabeça, seus olhos desviam dos meus e encaram o vazio. Meu coração não se acalma, parece que vai explodir dentro de mim. - Onde estou?
- Quarentena. Um médico te analisou.
Minhas forças se esvaem e a garganta se fecha. A voz presa dentro de mim, querendo gritar se mantém silenciosa e minha alma chora.
Após uma respiração profunda e sua expressão denota o que eu quero desesperadamente não acreditar. Uma pergunta é feita a seguir. Duas palavras que fazem meu mundo ruir pouco a pouco.
- Por que? - Encaro-o. - Por que mentiu pra mim, Áttie? - Seu pomo de Adão se movimenta enquanto ele engole em seco e balança a cabeça. - Ou o certo seria omitiu?
- Narkys... - fico alarmada.
- Por que não me contou que era um deles? Sucata, fios, placas. - Ele fica de pé, respira com dificuldade. - Se você soubesse o que vi, como descobri... pelos deuses! Eu... eu...
- Narkys - estou desperta agora. Arrasto-me sentada na cama, aperto o lençol branco que me cobre contra o peito, tentando controlar o pulsar errante do músculo que não perde uma única oportunidade de se contrair. Não, não isso. Não agora meu Deus. - Se você deixar eu...
- Você explicar? - Me encara. O gelo em seus olhos queima mais que as chamas. - Acho incrível como todos pedem oportunidade para se explicar quando tudo já está perfeitamente claro. Não tem o que explicar. Vi eles abrindo sua cabeça, Átisla. Puxando fios e mais fios para fora. Como se você fosse a própria cartola de um mágico maluco.
- Eu não podia contar. - O corto. Desesperada, ao mesmo tempo não querendo ouvir essas palavras. Dói mais que qualquer coisa.
- Por que? - Ele estoura. Grita. Me encolho contra a cama e aperto ainda mais o lençol em meus punhos.
- Eu tinha medo. - Sussurro. As lágrimas mal enchem meus olhos e já transbordam, nadando desconsoladas pelo meu rosto.
Ele me encara mais afundo e começo a perceber coisas que ainda não estava preparada para ver. A mágoa profunda, a tristeza em sua expressão me cortavam profusamente. Eu que causei isso. Bagunça tudo.
- Então não deveria ter se aproximado. - São suas palavras e deixo o ar escapar em uma pequena lufada.
Meu coração simplesmente para dentro do meu peito. A repugnância e a decepção que dirige a mim me tem enraizada na cama, como uma árvore. Sou a filha de Zeus logo após morrer.
Sinto os fios do meu cérebro se rompendo um a um. A diretrizes da minha linha de raciocínio mudam drasticamente, revendo seus preceitos sobre quem sou e quem é a pessoa na minha frente.
Eu sou Átisla, um Sinóptico. Sou um ser humano com um cérebro diferente, um que me ajudou a sobreviver. Posso não ter ninguém, mas tenho a mim mesma. E se Narkys Archeron II tem um problema com isso, se ele vê um problema em quem sou e do que sou feita, então temos um impasse enorme.
Ele não é o príncipe encantado que imaginei. Ele é apenas o que mostrou desde o início, naquele maldito anúncio depois da recorrente notícia sobre Justin Yomashi e a “monstruosidade” de que fizeram. Eu não viraria parte disso.
Aprumando os ombros e inclinando o queixo para cima, estreito os olhos e o enfrento.
- Devo dizer Alteza, que não fui eu quem persegui você. Na realidade lembro claramente de querer me manter longe.
Ele arregala os olhos surpreso, mas logo o encobre. Não consigo mais lê-lo. O maxilar apertado, os dentes rangendo e a face rubra são as únicas indicações de que ele está sendo afetado assim como eu. Palavras mais ferem do que saram.
- Isso é um desrespeito direto contra seu superior e seu príncipe, não vou aturar isso. Quero você fora daqui em 24 horas.
Meu coração se acalma como um barco depois da tempestade. Tranquilo, deslizando pelas águas de um imenso oceano, perdido no meio do nada. Porém a calmaria não disfarça o desespero, assim como também não consigo disfarçar a dor eloquente me esfaqueando lentamente.
Assinto e olho para o cobertor branco que me cobre como um manto de inocência. Quase rio do pensamento. Inocência é algo que nunca tive e que nunca terei. Posso ter trocado de cérebro, mas as lembranças da antiga vida dura me perseguem como uma sombra.
- Não se preocupe, estarei fora da sua vida antes disso.
Não levanto os olhos quando o ouço sair do quarto. Não levanto os olhos quando me dou conta de que o médico estava aqui o tempo todo durante nossa discussão e que agora caminha em torno do quarto, silenciosamente.
Não levanto o rosto quando se passou quase meia hora depois que saí do palácio, com apenas a roupa no corpo, meus benefícios de empregada durante o ano que passei aqui e o diagnostico escrito do meu recente “surto”.
E, não menos importante, não levanto o rosto e nem olho para trás quando minhas pernas vacilantes caminham para frente, sempre para frente. Cada passo que dou meu coração se comprime dentro do meu peito, até que se torna um vazio no lugar dele. Muito bem-vindo por sinal.
A dor não passa, mas acabo por não a sentir mais. Estou completamente dormente, e interiormente desejo ficar assim pelo restante dos meus dias.
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Coroas de Lata - Sinópticos |Conto2|
Short StorySegundo conto da série Coroas de Lata (Primeiro conto: Sintético - disponível no perfil da @QuaseCarol) ☆Prêmio de Primeiro Lugar no desafio 6 (distopia) do RealezaBr☆ ----------------------------------------------- Abaixo a monstruosidade. Era isto...