Meus olhos contemplaram o portal mais uma vez. Sua cor era um vermelho escuro e denso, tristonho. Não havia ruídos, muito menos a mesma magia viva e vibrante de quando Olden me acompanhava. Sei que é um pouco bobo da minha parte, mas aquilo dava a entender que o portal estava de luto. O silencio nos envolveu, Unborn era um tanto taciturna. Eu tinha um certo temor por aquele velho fantasma, suas marcas de idade eram profundas e seus olhos tinham um tom de amargura que contrastava com o azul-claro e límpido de seus olhos, parecia um corpo sem alma.
Enquanto eu flutuava em meus pensamentos, nem mesmo percebi que havíamos aterrissado em um solo pavimentado e seco. Havia névoa para todos os lados, o que nos impedia de olhar para o fim das extremidades da rua larga e vazia. A nossa frente, haviam algumas lojinhas solitárias e sem cor. Entretanto, uma me chamou atenção. Sua cor era um verde escuro e metálico, na porta havia uma placa com o dizeres "aberto", a luz amarelada se derramava pelos nossos pés.
— Eu não faço a mínima ideia de onde estamos. — adiantei.
— É claro que não sabe, — interrompeu — afinal, nós estamos no seu futuro, você nem sabe que este lugar existe.
— Então como irei contar a história se eu nem vivi isto ainda?
— Porque agora é a minha vez de narrar esta história. A sua história. — por algum motivo, eu senti um certo arrepio por aquela sentença — Está pronta, senhorita?
— Nem um pouco, mas tenho outra opção?
— Não. — riu.
— Então vamos lá! — fingi um certo ânimo.
Segui Unborn por aquele solo cinzento e adentramos a loja sem mesmo abrir a porta, eu precisava me acostumar com aquilo. No interior da loja, havia uma escrivaninha com uma máquina de escrever e vários papéis amassados pelo chão. No lado oposto à escrivaninha, havia uma bancada, e por trás da mesma, havia uma estante repleta de livros. Era uma livraria.
— Ao se formar, você adentrou no mercado de trabalho como administradora, mas com o tempo, estava infeliz com o emprego, não se sentia bem em seu ambiente de trabalho. Sendo assim, você desistiu, e como não havia sobrado mais dinheiro para tentar outro curso, você resolveu trabalhar como bibliotecária e vender todos os livros que tinha herdado de seu tio-avô Oswald, e com este novo emprego, passou a ler mais e descobriu que tinha jeito para a escrita, começando assim, a escrever a sua própria história. Naquela época você vendia muitos e muitos livros, afinal, a sociedade se interessava realmente por literatura. Entretanto, com o passar dos anos, com a televisão e os programas que prendiam o público, os clientes foram se tornando escassos, até ninguém sobrar. Você passou por um bloqueio criativo que não se esvaia nunca, a sua alma se entristeceu, e como você não tinha amigos, estava completamente sozinha.
Adentrando um pouco mais a loja, eu pude ver uma mulher mais velha, as marcas de idade eram destacadas pelas lágrimas, seus cabelos estavam desidratados e suas roupas eram simples. Ela, — no caso, eu — estava sentada em uma cadeira velha e aos pedaços, chorando.
O ambiente ao nosso redor se modificou outra vez. Meu "eu" do futuro estava sentada no degrau da varanda de minha casa. Seus olhos estavam vermelhos, ela tossia muito e pude perceber que, com a tosse, saia alguns respingos de sangue que manchavam o guardanapo, outrora branco e imaculado, em suas mãos. Seus cabelos avermelhados estavam desgrenhados e ela vestia um casaco cheio de remendos.
— Com o inverno rígido de Londres, você acabou adoecendo. Sua alimentação era péssima, você fumava um maço de cigarro por dia e bebia desenfreadamente pelas suas frustrações. Todos esses fatores lhe trouxeram uma tuberculose devastadora. E por falta de conhecimento, pensou que era somente um resfriado e não quis passar por um tratamento. E mesmo que quisesse, nesta época o tratamento custava muito caro e você não tinha sequer um tostão. — Unborn contou.
O ruído da porta de madeira desgastada abrindo tomou a nossa atenção. Um homem alto, dos olhos claros e cabelos negros, um pouco mais velho que o meu "eu" do futuro saía de dentro daquela velha casa com uma porção de malas nas mãos e um semblante fechado e cruel. Ele passou pela pobre mulher, sem mesmo olhar em sua face.
— Bernard! Aonde vai, meu amor?! — ela corria atrás daquele homem da forma mais melancólica possível.
— Eu já me cansei de você, me cansei de viver com você e lidar com essa sua doença nojenta. Eu nunca amei você de verdade, eu somente procurava alguns momentos de felicidade. E com toda certeza, eu jamais poderia encontrá-los com você! — Bernard saiu de forma ríspida, deixando um vão enorme no coração de uma mulher desamparada. Naquele momento, eu a vi ajoelhada sobre o solo escuro e frio, não havia sol, o dia estava pálido, sem cor alguma e suas lágrimas refletiam a paleta de cores do ambiente ao nosso redor.
— Bem, como você pôde ver, este é Bernard, vocês se conheciam fazia somente alguns meses, foi uma aventura sua, que se foi de sua vida tão depressa quanto você jamais havia imaginado. Por ser como você é, pela sua personalidade e suas atitudes, as pessoas não permaneciam por muito tempo em sua vida. E foi assim com Bernard. Após a ida de Dorian e a morte de Rebecca, você não conseguiu nenhum amigo de verdade, muito menos alguém que realmente te amasse. — aquela narrativa devastou o meu coração e minhas esperanças, as lágrimas já banhavam o meu rosto. Entretanto, Unborn me envolveu em seus braços de forma acolhedora — Não chore, criança. Você mesma trouxe isso para sua vida, isto não é nada mais, nada menos que as consequências de suas atitudes, este é o seu destino. — Unborn sentenciou, mudando seu tom de voz doce, para sombrio.
Isto surtiu como um choque em meu peito, talvez eu jamais poderia reverter o meu futuro! Vozes inundaram a minha mente, atormentando a minha alma. Eu comecei a correr desenfreadamente, não havia mais lágrimas para derramar, uma tempestade impetuosa me alcançou e senti um gramado morto e encharcado sob os meus pés. Tudo ao meu redor havia mudado novamente. Eu pude perceber que haviam lápides por todos os lados, a chuva molhava os meus cabelos e minhas roupas, e um pouco a frente, havia um homem com uma pá nas mãos, ele estava de frente a uma cova aparentemente vazia. O coveiro tirou seu chapéu como uma forma de respeito. Ao me aproximar mais, pude ver que o corpo de uma mulher mal-amada estava lá, jogado de qualquer jeito. Sim, era eu. Não havia ninguém em meu enterro, eu estava sozinha até mesmo na morte. Ouvi então os pingos de chuvas serem interrompidos por um guarda-chuva negro. Era Unborn, resolveu me fazer companhia.
— A tuberculose havia piorado e você veio a óbito um pouco antes de completar quarenta anos de idade, e por coincidência, seu enterro foi em uma tarde natalina. Você estava sozinha tanto em vida, quanto em morte. Ninguém foi ao seu enterro. Na verdade, as pessoas que lhe conheciam nem sabiam que você havia padecido tão precocemente. Você quebrou qualquer tipo de vínculo com todas elas, e como você estava falida financeiramente, não pôde ser enterrada de modo um pouco mais digno.
O coveiro pôs seu chapéu sobre as falhas de seu cabelo ralo, tomou a pá em uma posição adequada e começou a depositar a terra sobre o corpo desfalecido. Naquele momento, eu pude ver o que estava por trás da pá. Era uma lápide. A minha lápide.
Unborn carregava duas rosas brancas junto ao peito. Uma deu a mim, e a outra, jogou de modo fúnebre em minha cova.A medida que o coveiro jogava terra sobre meu corpo, eu me tornava cada vez mais incrédula sobre a realidade do que me cercava, eu não podia crer que o meu destino poderia ser tão miserável e obscuro quanto o que havia presenciado.
Eu corria novamente, e dessa vez, senti uma presença me seguir. Olhei para trás por um segundo e vi um redemoinho de trevas, juntamente a Unborn, me cercando. Sendo assim, fui tomada por toda aquela densa e sufocante escuridão.
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Quando a Neve Cair [✓]
Historia Corta(Obra vencedora do 1º lugar do Concurso Oscar Wattpad da categoria CONTO) A vida de Joanna sempre foi regada a trabalho, lágrimas e superação. Aos seus vinte e cinco anos de idade, a ruiva guarda consigo um histórico gigantesco de decepções e trag...